Conhece a ética psicanalítica?

O analista não está um passo à frente do seu cliente, mas, sim, sempre, um passo atrás.

Qual ética estaria por trás da atuação psicanalítica? Seria a ética do sigilo – que preservaria reservadas as nossas confidências mais secretas? Seria a ética do silêncio – que manteria em suspense e em suspensão os nossos dizeres em cada sessão? Ou, talvez, a ética da atenção – porque nos sentimos ouvidos e acompanhados neste percurso, no mínimo, inusitado? Pois que certamente se trata de uma aventura por lugares inexplorados, por recônditos raros, ainda que comumente revelem-se como estranhos familiares. Mas fixemo-nos à ética: que saberes, se é que se pode denominá-los assim, sustentariam esta prática?

Sim, ‘prática’, eis uma palavra-chave, já que vale diferenciar saberes mais conceituais e intelectuais de saberes mais práticos e operacionais. Por exemplo, a Ciência ou a Filosofia são ricas em produções e discussões bastante vigorosas e esclarecedoras no âmbito do conhecimento das coisas (como a descoberta de que pinguins antárticos podem defecar a uma distância de 40 centímetros, ou como o debate sobre a existência transubjetiva do espírito do transmodernismo reflexo), mas que não necessariamente envolvem qualquer mudança no comportamento diário de nossas vidas ou afazeres. Quem já participou de um debate estético sobre Arte ou natureza também reconhece os ganhos ‘espirituais’ de tais conversações, e sabe inclusive que um dos motivos de seus prazeres é o de não existir neles nenhuma implicação moral que precise nos conduzir a isto ou àquilo. Note-se que não se está dizendo que não existam insights possíveis nestas elucubrações. O que interessa aqui é diferenciar conhecimentos que estão no campo do saber e conhecimentos que estão no campo do fazer; distinguir âmbitos que valorizam as pessoas sobretudo pelo que elas sabem, de outro em que o interessante é o que elas querem.

Há saberes que são transmissíveis. Há saberes que são delegáveis. Há saberes que são suscitáveis. Como no Educar, no Governar e no ‘Amar’. Cada uma destas coisas tem uma ética, um proceder, uma forma de operar e um estilo de intentar. Mas Psicanálise não é uma forma de ensino, ainda que nela existam aprendizagens. Também não é uma forma de governo, um exercício de um poder, ainda que tais elementos surjam e apresentem-se em suas engrenagens. Tampouco é um jogo de sedução, ainda que as engrenagens citadas por vezes sejam rodadas por um certo tipo de amor. Não, ela, em si, não é isso, mas presta-se a tais coisas, no sentido de que tudo isso participa da relação analítica. Só que, se estes regimes não são preponderantes, é muito exatamente pela existência de uma ética bastante fina – alguns vão dizer, até mesmo, afinada. Mas afinada com o quê?

Bem, pode-se antecipar que nosso papel como psicanalistas não é o de desejar algo para alguém, mas ser aquele graças a quem o cliente possa chegar até seu desejo. E também que a finalidade de uma análise não é a de que o sujeito saiba explicar melhor as razões de seu sofrimento, e sim que, menos zeloso da integridade do seu Eu, menos temeroso das manifestações do inconsciente, possa levar menos a sério suas pretensões e deixar de se torturar por seus tropeços.

Consegue-se captar a sutileza da relação psicanalítica com o saber? Percebam que o saber não é o objeto, não é o objetivo. Não se busca a construção de um tipo de saber maior e mais eficiente. E nem é o caso de um saber que o analista sabe antecipadamente e oferecerá ao analisando para que este consiga ‘chegar lá’. O analista não está um passo à frente do seu cliente, mas, sim, sempre, um passo atrás. E é nesse ‘estranho’ passo atrás que ele propulsionará o trabalho de seu analisando – pois, sim, é este último que irá trabalhar! Sendo também o único a de fato desfrutar do produto e das consequências de seu trabalho.

 Não falar pelo outro é parte crucial da ética analítica, já que é somente em posição de agente de sua própria fala, agente de seu próprio trabalho, que é possível ao analisando apropriar-se de seus deslizes. Ademais, sequer é possível que um faça pelo outro (embora muitas Escolas de pensamento e de terapêutica pensem que isso seja possível). Aliás, nada mais terrível em termos de perda de si que um outro tomando as rédeas pela gente. Não, para a psicanálise a criação de um analista no analisando é consequência ética fundamental: não para que o dito cujo passe a atender outros sujeitos em seu consultório, mas para que este possa se comprometer com a tarefa psíquica de investigação, onde a dúvida tem o papel crucial de abrir brechas em velhas certezas arraigadas. Claro, sem precisar elevar a dúvida à condição de deusa. É só que o objetivo analítico inclui uma diminuição da insistência das respostas prontas, da necessidade de explicações, ou melhor, da necessidade de ficar se explicando.

 A investigação analítica não é aquela das observações das reações, dos detalhes posturais ou do teor emocional. O que não quer dizer, mais uma vez, que estas manifestações não sejam levadas em conta, especialmente em casos de profundo sofrimento psíquico. Cuidados e delicadezas podem ser essenciais ao manejo de certas condições. Hospitalidade para com o desamparo e empatia com as modulações afetivas dos analisandos, afora a própria saúde do analista, também são princípios éticos neste campo. Mas isso não pode ser confundido com uma reposição da quantidade de amor e carinhos que faltaram, sabe-se lá, na infância, para que então o sujeito recompletado possa viver mais feliz.

 Pois, se há uma preocupação do analista em não responder a certas perguntas que o paciente lhe dirige, como “o que você quer de mim?”, ou “o que você deseja que eu seja, ou que eu faça, para que me torne amável?”, é justamente por haver essa sua ética do desejo, o que não exclui uma ética do cuidado. Tatear e sentir conjuntamente são exigências de uma prática que respeita o tempo ímpar de cada um, um tempo que não costuma seguir essa cronologia convencionada que tanto apreciamos em nossos relógios e calendários. E também, pode ser necessária a criação de um espaço criativo e de ‘brincadeiras’; não me refiro a um playground para crianças, mas à possibilidade de um analisante poder fazer troça de seu analista e a de este último de ser capaz de suportar ser feito de bobo, ou mesmo ser chamado de louco pelos nonsenses que costuma dizer (que carapaça ele irá ser vestido, não se sabe, mas pode ser bem deselegante simplesmente a recusar). Talvez, mais pontualmente, a simples condição de se sentirem à vontade o suficiente (não mais) e não-indiferentes à dura empreitada que almejam realizar.

 O psicanalista inglês, Wilfred Bion, dizia que ‘amor sem verdade não passa de uma paixão, e que verdade sem amor não passa de crueldade’. Talvez fosse possível parodiar que ética do cuidado sem ética do desejo seja apenas psicoterapia ou maternagem, ao passo que ética do desejo sem ética do cuidado não passe de exercício de resignação.

 Enfim, eis algo do que se poderia dizer assim, por hora, sobre ética psicanalítica (sob uma intentada ética de um bem-dizer), sobre essa indisciplinada disciplina que leva em conta e se pauta por um saber que não se sabe, a saber: o inconsciente. Sobre este, fica para uma próxima.

 

Texto produzido por Estanislau Alves da Silva Filho, analista da Rede de Atendimento do Elabora Psicanálise.