Curso introdutório de psicanálise online chega ao Brasil, direto da Sociedade Psicanalítica Britânica

instituto de psicanalise de londres

Uma das mais importantes instituições de formação em psicanálise do mundo e reconhecida pela Associação Internacional de Psicanálise (IPA), a Sociedade Psicanalítica Britânica, está oferecendo aulas introdutórias de psicanálise online ministradas em vídeo pelos seus próprios professores. O material já foi traduzido para o japonês, chinês e, agora, para o português, pela equipe de tradução especializada do Núcleo Elabora Psicanálise acessível. A proposta é se apropriar das novas formas de comunicação e tornar o conhecimento acessível para além dos muros da instituição.

Para quem?

Não se trata de uma formação, mas são seminários introdutórios que oferecem um panorama geral e cuidadoso sobre as principais teorias psicanalíticas, apresentando as ideias fundamentais de Freud e de seus seguidores da linha inglesa. Não há exigência de conhecimento prévio, podendo ser cursado por pessoas de outras áreas e que tem interesse em psicanálise, bem como por analistas em formação interessados em aprofundar seus conhecimentos gerais em Psicanálise. 

Conteúdo do curso

São 12 vídeo-aulas de aproximadamente 50 minutos com suas respectivas transcrições em português, questões para estudo e bibliografia sugerida. O aluno tem acesso a todos os materiais continuamente por um período de 4 meses. Dessa forma, ele pode ver e rever as aulas e questões de estudo quando e quantas vezes quiser, e pode estudar no próprio ritmo.

A primeira parte do curso aborda Freud e suas teorias: O inconsciente, os modelos freudianos da mente, sexualidade, sonhos, mecanismos de defesa, transferência e contratransferência e o setting analítico. Na segunda parte, apresenta as influências da psicanálise inglesa tais como Anna Freud, Melanie Klein, Donald Winnicott e Wilfred Bion. Veja mais aqui.

A legitimidade do curso e da instituição.

É, sem dúvida, uma grande oportunidade aos brasileiros poder ter acesso a esse material. Entre os ex-alunos desta instituição inglesa estão algumas das figuras mais importantes da história da psicanálise: Michael Balint, Wilfred Bion, John Bowlby, Anna Freud, Melanie Klein, Joseph Sandler, Hannah Segal e Donald Winnicott.  E ainda hoje é a casa de psicanalistas de renome mundial, que estão na vanguarda da prática psicanalítica. Alguns de seus membros foram responsáveis pela criação e desenvolvimento de centros de excelência nos Serviços Nacionais de Saúde, tais como a Clínica Tavistock, a Clínica Portman e o Hospital Maudsley.

Quanto custa, Quando começa e Como se matricular

O curso começa no dia 1 de julho e o acesso permanece até o dia 1 de novembro. O investimento é de £216, o que dá em torno de R$1070,00. O pagamento é feito via cartão de crédito.

Para se inscrever basta seguir os seguintes passos: Acesse http://learning.psychoanalysis.org.uk/, clique em Online Courses & Blended Learning, depois em Introductory Lectures Online, em Click here to register e, enfim, em Register Now. Preencha as informações requisitadas e pague com cartão de crédito.

Se ainda restar dúvidas, mande um email para enquiries@psychoanalysis.org.uk

O Núcleo Elabora, que teve a honra de traduzir esse material, está muito feliz em tornar acessível um conteúdo de tal qualidade e indica fortemente o curso para pessoas interessadas em psicanálise, psicanalistas em formação e em formação continuada. A linguagem é acessível e o conteúdo consistente, tal como acreditamos que deve ser a transmissão em psicanálise.

Curso de psicanálise online

Natal Doriana

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Natal quase sempre significa se aproximar daquela parte da família que você geralmente não convive tanto, mas que, mesmo assim, pode evocar sentimentos perturbadores. A ideia é que seja um encontro feliz, contudo o palco está armado para as cenas de rivalidade entre irmãos, primos, para o reviver de perdas, para as frustrações - por não sermos amados como a nossa expectativa, ou por não amarmos e admirarmos aquelas pessoas da forma como gostaríamos que fosse. Ou ainda, estar presente em outra família que admiramos e nos ressentirmos por não ter algo parecido na nossa própria casa.

Essa instituição família pode ser uma coisa esquisita: sob determinada perspectiva parece uma espécie de clã que se propõe a ser uma garantia de amor por decreto, quase sempre fadada à frustração. A tradição supõe que, se você tem uma família, será ali onde você encontrará o seu suporte para sobrevivência e a sua fonte de amor e compreensão. Teoricamente serão as pessoas mais próximas e suas parceiras no caos da vida. Elas quem mais vão te amar, e que você também mais amará nesta existência. É um pacto de sangue, literalmente. No imaginário social a família é associada a um lar de amor e reconhecimento mútuo. Mas na real, pode ser que não seja bem assim.

É fato que a família é onde vivemos experiências memoráveis de sobrevivência e de crescimento, sendo que aquelas pessoas serão sempre nossas testemunhas. Toda essa experiência compartilhada cria marcas, boas e más, e constitui quem somos.  Contudo é preciso lembrar: as famílias não são escolhas. Não é curioso pensar que é um jogo de aleatoriedade que te coloca nestas parcerias tão profundas e importantes da vida? Temos nossas identificações com a família, mas também nos diferenciamos dela. Será que hoje seu irmão é um cara que você escolheria como amigo? A sua mãe como sua confidente? Que seu tio é um cara com quem você beberia uma cerveja?

A cena matinal do comercial da Doriana é um ideal. E nesta época natalina, todos os posts felizes de facebook alimentam ainda mais a fantasia de que todos estão vivendo aquela felicidade transbordante no antro familiar, aquela que você não tem acesso. Agora, nada mais deprimente que a ideia de que a felicidade está em algum lugar, que você poderia estar, mas que por algum fracasso pessoal não chegou lá. Submetidos a essa lógica, aproximar-se dos tempos natalinos é aproximar-se desse ideal intangível e, portanto, de penosas frustrações. Mas, ainda assim, pode ser que seja do seu desejo estar ali com esses parentes, talvez relembrar versões esquecidas sobre você mesmo, e que isso, de alguma forma, lhe alimente a alma, por que não?

No mais, os amigos, sim, são escolhas. Se eles coincidirem com sua família, saiba que és um sujeito de sorte. Senão, a minha sugestão é que você tente vê-los depois da ceia, ou guarde um tempo das férias depois de ano tão cheio para estar junto das pessoas que você escolheu e que verdadeiramente lhe fazem sentido. Os amigos tornam a vida um lugar um pouco menos hostil.

 

Nina Lira é analista da Rede de Atendimento Elabora Psicanálise

Nina Lira

Graduada pela USP e psicanalista pelo Departamento de Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Foi psicoterapeuta no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas em São Paulo e pesquisadora pela UNIFESP em projeto sobre (Re)configurações das Políticas Nacionais de Saúde, encomendado pelo Ministério da Saúde. Atualmente atende jovens e adultos em consultório particular e é uma das responsáveis pelo dispositivo clínico do Grupo de Acolhimento da Clínica Psicológica do Instituto Sedes. Entre outros trabalhos, traduziu o livro da psicanalista inglesa Meg Harris Williams, pelaKarnac Books Ltda.

Conversas em Grupo (Um_a_parte)

(Havia uma conversa. Haveria que haver! Se dava em um salão antigo. Mas a coisa acontecia meio fora de tempo, sabe? Consegue imaginar? Diferentes pessoas e momentos, encontrando-se numa certa empreitada, digamos, coletiva. Não: pública! Quase-pública, quase publicável. E, mesmo assim, aqui está ela. Ou um à parte dela. Diríamos, um diferente bate-papo que descontraidamente traz algo da história da psicanálise, bem como de suas multiplicidades teórico-práticas. Informativo e sugestivamente reflexivo, até o fim. Que me diz?)

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BREUER - ... ela descrevia esse método, de modo apropriado e à sério, como uma "talking cure" (cura pela fala), ao mesmo tempo em que se referia a ele, em tom de brincadeira, como "chimney-sweeping" (limpeza de chaminé).

ANNA - O senhor acreditava que cada sintoma histérico individual desaparecia, de forma imediata e permanente, tanto quando conseguia-se trazer à luz com toda clareza a lembrança do acontecimento motivador, assim avivando igualmente o afeto que o acompanhava, quanto quando o paciente descrevia o tal episódio da maneira mais detalhada possível, traduzindo o afeto em palavras.

BIÓGRAFO - À época usava-se a hipnose, e com ela buscava-se permitir que o fato estrangulado encontrasse saída através da fala, na chamada ab-reação do afeto, submetendo-se a representação à correção associativa por meio da sua introdução na consciência normal (sob hipnose leve), ou mesmo através de uma eliminação por sugestão direta do médico, caso se obtivesse um sonambulismo acompanhado de amnésia.

FREUD - Exatamente, a talking cure, de início, era sob hipnose - assim rebaixava-se a censura. Mas recordo-me de um caso, uma histérica altamente dotada, uma mulher bem nascida, que me fora confiada porque ninguém sabia o que fazer com ela. Pela influência hipnótica eu lhe tornara possível levar uma existência tolerável, e sempre fui capaz de tirá-la da miséria de sua condição. Mas ela sempre recaía após breve tempo, e em minha ignorância atribuía isso ao fato de que sua hipnose jamais alcançara a fase sonambúlica.

BERHEIM - Você fala daquela paciente que trouxe até mim, na clínica em Nancy? 

FREUD - Exato!

BERHEIM - Tentei várias vezes provocar um tal estado nela, sem qualquer sucesso. Confesso que meus maiores êxitos terapêuticos por meio da sugestão só foram alcançados em minha clínica hospitalar, e não com os meus pacientes particulares.

FERENCZI - Minhas primeiras experiências com hipnose, efetuadas quando ainda era estudante, nos empregados da livraria do meu pai, foram todas bem-sucedidas, sem exceção; mas não posso dizer o mesmo dos meus resultados posteriores. É bem verdade que eu já não tinha aquela confiança absoluta em mim mesmo que só a ignorância pode conceder. E como já me preocupava com o alívio e a cura dos sintomas...

FREUD - Nos estudos sobre a Histeria, repetidas vezes, quando prometia ajuda ou alívio pelo tratamento catártico, tinha de ouvir de meus doentes a objeção: "Você mesmo diz que meus padecimentos provavelmente se relacionam com as circunstâncias e os acontecimentos de minha vida: coisas que você nada pode mudar; de que maneira, então, quer me ajudar?" A isso eu conseguia responder: "De fato, não duvido que seria mais fácil para o destino do que para mim eliminar seu sofrimento: mas você se convencerá de que muito se ganha se conseguirmos transformar sua miséria histérica em infelicidade comum. Desta última você poderá se defender melhor com uma vida psíquica restabelecida."

BIÓGRAFO - Os resultados práticos do processo catártico foram excelentes. Os seus defeitos, que se tornaram evidentes depois, eram os mesmos de todas as formas de hipnose: os resultados não eram permanentes e eram especialmente dependentes da relação pessoal entre o paciente e o médico. Uma "purificação" do sintoma não é realmente suficiente para transformar a realidade psíquica de onde o sintoma tira sua consistência e origem.

PACIENTE - Espera aí, você disse "substituir as grandes crises de sofrimento histérico por um sofrimento cotidiano e suportável"? Isso parece pouco consolador... o que eu quero é um final feliz!

LACAN - Mas a psicanálise não se recusa a oferecer felicidade.

BIÓGRAFO - Estamos nos adiantando. O termo "psicanálise" terá sido inventado após Freud ter continuado sozinho com suas investigações, substituindo o método hipnótico pela "associação livre", que é a regra fundamental da análise. 

GOETHE - O termo "psicanálise" não foi inspirado na química de minhas Afinidades Eletivas? Em meu texto denominado 'Ifigênia em Táuride' descrevi a cura à base da palavra de meu personagem Orestes.

BIÓGRAFO - Espere, isso não é o que...

LACAN - Freud disse que o inconsciente é atemporal. O considerarei em termos de tempo lógico.

HEGEL - Você está se referindo ao que eu disse sobre a prioridade da lógica sobre a cronologia? [Eu costumava dar um exemplo como o do nexo entre paternidade e filiação: as duas condições são rigorosamente simultâneas no tempo: sou pai no exato momento em que meu filho nasce. No entanto, no plano lógico, eu o precedo - eu existo antes de meu filho]

BIÓGRAFO - Mas...

EU MESMO - Blá, que a psicanálise é herdeira da hipnose todo mundo já sabe. Deixa eles seguirem, vamos ver no que isso vai dar.

BIÓGRAFO - Eu já sei onde isso vai dar: sessões curtas! Ultra-curtas!

ANALISANTE - Sessões de tempo variável.

WINNICOTT - Interessante. Relatei experiências de sessões de duas e até três horas.

FERENCZI - Vocês estão falando de variações técnicas quanto ao tempo? Também experimentei certas medidas, mas somente em casos 'excepcionais', como a fixação de um prazo final para o tratamento ou injunções diretas [como a proibição de uma certa postura em uma paciente], com o intuito de acelerar a investigação do material psíquico inconsciente e como uma forma de superar a estagnação da análise. Desde então fui bastante criticado por meus colegas. Cheguei a reconsiderar algumas de minhas colocações, mas... já era tarde demais.

FREUD - Senhores, a discussão do problema técnico de saber como acelerar o lento progresso de uma análise nos conduz a outra questão, mais profundamente interessante: existe algo que se possa chamar de término de uma análise — há alguma possibilidade de levar uma análise a tal término?

EU MESMO - A julgar pela conversa comum dos analistas, assim pareceria ser, já que frequentemente os ouvimos dizer, quando deploram ou desculpam as imperfeições reconhecidas de algum mortal seu colega: ‘Sua análise não foi terminada’ ou ‘ele nunca se analisou até o fim.’

FREUD - Claro, teríamos, primeiro, que decidir o que se quer dizer pela expressão ambígua ‘o término de uma análise’. De um ponto de vista prático, é fácil responder [darei aqui um pontapé na partida]. Uma análise termina quando analista e paciente deixam de encontrar-se para a sessão analítica, o que aconteceria quando duas condições fossem mais ou menos preenchidas: em primeiro lugar, que o paciente não mais esteja sofrendo de seus sintomas e tenha superado suas ansiedades e inibições; em segundo, que o analista julgue que foi tornado consciente tanto material reprimido, que foi explicada tanta coisa ininteligível, que foram vencidas tantas resistências internas, que não há necessidade de temer uma repetição do processo patológico em apreço.

KLEIN - Antes de terminar uma análise, tenho que me indagar se os conflitos e as ansiedades vivenciados durante o primeiro ano de vida foram suficientemente analisados e elaborados durante o curso do tratamento.

FERENCZI - A análise está verdadeiramente terminada quando não há dispensa por parte do médico nem por parte do paciente; a análise deve, por assim dizer, morrer de esgotamento, devendo o médico ser sempre o mais desconfiado dos dois e suspeitar de que o paciente quer salvar alguma coisa da sua neurose, quando exprime a vontade de partir. Um paciente verdadeiramente curado desliga-se da análise, lenta mas seguramente; por conseguinte, enquanto o paciente quiser vir, terá ainda um lugar na análise.

CONTARDO CALLIGARIS - Mas, escuta, o fim da análise não é como um ponto final na linha do tempo, e, sim, como alguma coisa incluída ao longo de todo o processo analítico, logicamente. É certo que o término é uma questão que diz respeito ao analisando, o que não quer dizer que o analista não esteja envolvido também.

BION - Quanto mais profunda é a investigação, mais claro fica que uma análise, por mais prolongada que ela seja, só pode ser o começo de uma busca. Prefiro entender que uma análise não termina nunca e que um dos seus sucessos é quando o analisando busca "por cada vez mais uma análise". E mais, sem esquecer, que o desejo de curar o paciente é um impulso a ser evitado!

JANSY MELLO - Aproveitando uma citação a Blanchot que tantas vezes o ouvi enunciar, Bion (e que, salvo engano, também foi mencionada na última conversa, certo?): "a resposta é a morte da curiosidade", gostaria de sugerir que façamos nesta frase a substituição da palavra original "resposta", pela palavra "cura", pois assim perceberemos melhor o quanto ter a cura como meta de uma análise pode ser empobrecedor para o paciente. Já tive oportunidade de experimentar como uma psicanálise mais profunda e "verdadeira" (sei que é uma questão polêmica essa, a da "psicanálise de verdade") só pode acontecer depois que o analisando se livrou das queixas que originalmente o levaram à análise - queixas essas que, tantas vezes, ocultavam outras que só então começaram a aflorar - e decidiu continuar a análise pelo que lhe parecia ser sua livre escolha de estar ali.

HUMBERTO HAYDT MELLO - Não é necessário um submarino para as investigações. Dá pra alcançar novas margens à nado mesmo, pela superfície.

LACAN - Justamente. Considero que uma análise não deve ser levada longe demais. Quando o analisante pensa que está feliz de viver, é o bastante.

ESTANISLAU - Feliz de viver? ... não poderia trazer uma formulação mais delimitável, por favor? 

LACAN - Havia uma fórmula introduzida nos primórdios de nosso ensino. O sujeito, dizíamos, começa a análise falando de si sem falar com vocês, ou falando com vocês sem falar de si. Quando puder falar de si com vocês, a análise estará terminada.

PACIENTE - O Freud não me diria isso.

ANALISTA DE BAGÉ - O que Freud diria tu não ia entender mesmo. Ou tu sabe alemão?

ERIK ERIKSON - Certa vez perguntaram a Freud o que uma pessoa normal deveria ser capaz de fazer bem. Freud simplesmente disse "Lieben und arbeiten" (amar e trabalhar).

FREUD - Acho que escrevi algo parecido em 1937... quando também descrevi o famoso gewachsener Fels(Grande Rochedo) da Castração. Um impasse. Um resto. Um incurável.

MELTZER - É nesse sentido que penso que o objetivo da psicanálise não seria o de curar os sintomas ou o de tornar o paciente respeitável, mas, sim, o de introduzir o paciente a si mesmo, para que ele possa digerir a verdade sobre si mesmo, o que, em seguida, permitirá que sua mente cresça. Vejo a psicanálise menos como "terapia" e mais como uma atividade que deveria apreender e descrever para o paciente o mundo em que ele vive, com o fim de dar-lhe uma oportunidade para conhecê-lo e, eventualmente, mudar.

MEG HARRIS - Essencialmente, o que o analisando aprende e adquire com o analista é a introjeção de um processo de auto-análise que, se genuíno, estará suficientemente estabelecido para continuar funcionando. Uma pessoa nunca pode ser curada de ser ela mesma.

JANSY MELLO – E nem ser curada da vida...

BIÓGRAFO - Auto-análise? Isso demanda uma extensa discussão, que se inicia com o próprio Freud confessando já em 1887, numa carta a Fliess, a impossibilidade de uma genuína auto-análise: "se fosse possível, não existiria neurose".

EU MESMO - Quem foi que chamou esse cara de volta?

BIÓGRAFO - Contudo, Freud (1914) chegou a preconizar a conveniência de se analisar os próprios sonhos ("talvez seja o suficiente para uma pessoa que sonhe com frequência e não seja muito anormal"), inclusive fazendo comentários elogiosos (1926) aos achados e ao modo sistemático do método de auto-análise de E. Pickworth Farrow. Nada obstante, já dizia (1912) que quando se tratava de uma análise de formação, era necessário uma outra pessoa, e mesmo (1935) que "na auto-análise o perigo de incompletude é grande", e "a pessoa logo se satisfazcom uma explicação parcial." O próprio Ferenczi aí ao lado escreveu uma carta a seu amigo Groddeck em 11 de outubro de 1922 descrevendo tal impossibilidade, e pontuando que a análise é um processo eminentemente social, que requer "pelo menos duas pessoas".

FERENCZI - Você não leu o que escrevi sobre isso em meu Diário Clínico, não é? Certos pontos são terríveis. Mas acho que resumiria dizendo que é um fato bem conhecido que a confissão feita a outra pessoa produz efeitos mais intensos e mais profundos do que a autoconfissão, o mesmo ocorrendo com a análise em relação à autoanálise.

JANSY MELLO - Falar em confissão nos conduz de volta à catarse, à "talking cure" e revaloriza a questão da culpabilidade que foi, durante tantos anos, um dos focos da análise, operando em detrimento de outros vértices de compreensão do mundo mental.

ESTANISLAU - Seja como for, a auto-análise levanta pontos interessantes. Primeiro porque ela pode ser entendida de várias formas. Segundo porque traz à tona algo de uma "dissociação instrumental", talvez algo que um analista lançasse mão durante uma análise. Mas acho que isso seria sair um pouco da questão... O que você acha, Winnicott?

WINNICOTT - Estava aqui pensando sobre a análise com crianças, sobre a conquista da "capacidade para estar só", sobre o resgate da possibilidade de brincar e mesmo sobre os estágios de desenvolvimento, da dependência absoluta à independência (que é sempre) relativa. [A maturidade individual implica movimento em direção à independência, mas não existe essa coisa chamada "independência". Seria nocivo para a saúde o fato de um indivíduo ficar isolado a ponto de se sentir independente e invulnerável. Se essa pessoa está viva, sem dúvida há dependência! Dependência da enfermeira de um sanatório ou da família.] ... Quer dizer, não queremos que as crianças sob nosso cuidado constituam-se em membros de uma entre duas categorias extremas: de um lado aqueles que, embora tendo seus interesses direcionados à comunidade, têm vida pessoal tão insatisfatória que não chegam a possuir um verdadeiro sentido do Si; de outro, aqueles que só obtêm sua satisfação pessoal à custa de negligenciar suas relações com a sociedade, ou talvez sob pena de tornarem-se anti-sociais ou loucos. Pois sabemos que as pessoas enquadradas em qualquer desses dois extremos são infelizes, e sofrem. Alguns só encontram sua expressão pessoal no ato de suicídio. Alguém os decepcionou, algo malogrou em seu ambiente circundante em um ou mais dos primeiros estágios de desenvolvimento; é difícil consertar as coisas numa data tão posterior.

JOHN RICKMAN - Insanidade é não ser capaz de encontrar alguém que te aguente.

WINNICOTT - Minha tese é que, na terapia, tentamos imitar o processo natural que caracteriza o comportamento de qualquer mãe em relação à sua criança. Se a tese estiver correta deduz-se que é o par mãe-criança que pode nos ensinar os princípios básicos sobre os quais deve fundar-se nosso trabalho terapêutico, quando estivermos tratando de crianças cuja primeira relação com a mãe não foi “boa o suficiente”, ou foi interrompida. [...]

BION - Realmente, o destino do analista é tornar sua própria existência desnecessária. É o mesmo destino, pode-se dizer, dos pais: quando criamos os filhos corretamente, estes não necessitam de pais. 

WINNICOTT - Mas estive só associando até aqui; permitam-me tentar dizer o que acho, o que penso mais pontualmente. Ao praticar psicanálise, tenho o propósito de: me manter vivo; me manter bem; me manter desperto. Objetivo ser eu mesmo e me portar bem. Uma vez iniciada uma análise, espero continuar com ela, sobreviver a ela e terminá-la. Gosto de fazer análise e sempre anseio pelo seu fim. A análise só pela análise para mim não tem sentido. Faço análise porque é do que o paciente necessita. Se o paciente não necessita análise, então faço alguma outra coisa. [...] Em geral, 

análise é para aqueles que a querem, necessitam e podem tolerá-la. [...] Se o objetivo continua a ser verbalizar a conscientização nascente em termos de posição em que o paciente nos coloca, então estamos praticando análise; se não, então somos analistas praticando outra coisa que acreditamos ser apropriada para a ocasião. E por que não haveria de ser assim?

LACAN – Creio que Melanie Klein nos mostrou uma valiosa variação destas coisas ao enfiar simbolismo no pequeno Dick. Ela já começa jogando imediatamente em cima dele as interpretações maiores. Ela o joga numa verbalização brutal do mito edípico, quase tão revoltante para nós quanto para qualquer leitor mais distante. Mas é certo que depois dessa intervenção alguma coisa se produz. Ela ousa falar com ele! Dick está lá como se ela não existisse, como se fosse um móvel, como se para ele houvesse lá uma realidade pura e simples – ele vive na realidade! – nem nomeada e nem nomeável. Pois digo que, problematizando a função da fala como capaz de constituir a realidade, ela ousa falar a um ser que literalmente não responde, e que suas intervenções com caráter de intrusão simbolizam uma relação efetiva de um ser, que passa então a ser nomeado, com um outro. Ela dá nomes ao que antes era só real (ou que “não-era”), e com isso lhe introduz aquilo que lhe possibilita fazer um apelo. E, no campo da fala, o apelo localiza o semelhante, intima-o a uma resposta e produz a possibilidade de recusa. É a partir daí que se estabelecem relações de dependência com o outro. Mme. Klein?

KLEIN - Ainda estou pensando sobre o que Freud disse aqui. Sei que apesar do progresso feito em nossa teoria e nossa técnica, devemos ter em mente as limitações da terapia psicanalítica. Cheguei mesmo a admitir a existência de contraindicações à nosso processo, quando não há "a capacidade de aceitar o que o analista pode oferecer". Sim, o êxito resulta num enriquecimento da personalidade, numa plenitude da vida de fantasias e da capacidade de vivenciar emoções livremente. Mas...

LACAN - Não devemos recuar diante dos desafios de nosso tempo!

JACQUES-ALAIN MILLER - Houve um tempo em que os psicanalistas tentaram definir critérios e definir aquilo que se chamava 'as condições de analisibilidade', as condições que fazem com que um sujeito seja analisável. As listas eram longas e variadas, mas grosso modo pode-se dizer que a consideração das indicações e contraindicações faziam com que a etapa final da análise fosse, de um certo modo, exigida em seu início. A psicanálise estaria contra-indicada nas psicoses puras ou nas psicopatias severas. 

EU MESMO - Pois é, isso se refere a uma concepção de tratamento psicanalítico doravante obsoleta, caduca, porque se ordena a partir da ideia de uma "psicanálise pura", certo?

JACQUES-ALAIN MILLER - "Psicanálise pura" que entendo como sendo tributária da prática médica, como uma atividade paramédica que procederia em média com cinco sessões semanais "por um período de um ano e meio à dois" [como disse Edward Glover], com finalidade de cura e normalidade. Acontece que houve uma disjunção e uma mudança no sentido mesmo do que se chamava tratamento psicanalítico. A palavra "tratamento" cessou de saturar a significação atribuída à prática da psicanálise, o que é sinalizado pela substituição dele pelo termo "experiência" psicanalítica. Do "tratamento" que pode ser "indicado", "contra-indicado" através de avaliação feita por um outro - um sábio, um conhecedor, um expert -, passou-se à "experiência" vital, ou mesmo "existencial", que pode ser "desejada" ou não pelo próprio sujeito, até mesmo arriscada para ele como uma verdadeira "aventura subjetiva".

EU MESMO - Perfeito, o que aparece em primeiro plano não é mais a indicação e sim a demanda que um sujeito - não se diz mais "paciente" - apresenta a um psicanalista, e a autenticidade, a verificar, do desejo que habita esta demanda.

JACQUES-ALAIN MILLER - E é nesse sentido, por ser o objeto-psicanalista espantosamente versátil, disponível, multifuncional, que - sem filosofar muito - digo que o encontro com o psicanalista, no geral, faz bem. O analista sabe ser objeto, sem nada querer a priori, estar sem preconceitos quanto ao bom uso que se possa fazer dele. Tendo cultivado a sua docilidade, o analista desvela identificações ideais que assolam o sujeito e articula, fluidifica sentidos bloqueados e escorrega significações substanciais, por vezes arrumando pontos de parada.

ÉRIC LAURENT - A um jovem que hesitava em encarar uma análise, Jacques Lacan, para marcar o término das entrevistas preliminares (aquele período a que chamamos de 'tratamento de ensaio'), diz-lhe mais ou menos o seguinte: "Todos acabam sempre se tornando um personagem do romance que é a sua própria vida. Para isso não é necessário fazer uma psicanálise. O que esta realiza é comparável à relação entre o conto e o romance. A contração do tempo, que o conto possibilita, produz efeitos de estilo. A psicanálise lhe possibilitará perceber efeitos de estilo que poderão ser úteis a você". [O jovem em questão era eu]

[...] 

[Breve Silêncio - e com ele, a entrada de alguns comentários esparsos e disparatados oriundos dos salões ao lado]

CRÍTICO DE ARTE - Nossa, mas como falam difícil, barroco, esnobe. Comumente dá a sensação de estarmos em dívida com nossa própria capacidade de compreensão. Pelo menos não exageraram no jargão.

PASTOR - Mas também não falaram nada, de novo.

CIENTISTA - Os tratamentos científicos são centenas de vezes mais eficazes do que os alternativos. E mesmo quando os alternativos parecem funcionar, não sabemos realmente se desempenharam algum papel: melhoras espontâneas, até de cólera e esquizofrenia, podem ocorrer sem rezas e sem psicanálise.

FILÓSOFO - A meu ver os argumentos foram bem inconsistentes. 

JORNALISTA - Pois é, depois de divulgarmos que Freud explica, descobrimos que Freud é uma fraude!

[...]

[De volta ao salão]

ELISABETH ROUDINESCO - ... 

PENSAMENTO DE ROUDINESCO - [Durante um programa de televisão, La marche du siécle, no qual eu me encontrava ao lado de Françoise Giroud, Catherine Deneuve e alguns psicanalistas, fui violentamente agredida por um jornalista, que, além do mais, insistia em insultar Lacan, Freud, a psicanálise, e, mais ainda, as células psicológicas instaladas no caso de acidentes graves.  Eu estava acostumada com aquele tipo de agressão, mas naquela noite não consegui retrucar. Então, Jean-Marie Cavada voltou-se para Françoise, que, em seu tom inimitável, deixou escapar a seguinte frase de Lacan: "A psicanálise pode muito, mas ela é impotente contra a estupidez." Assim, pôs fim ao dilúvio verbal.]

PENSAMENTO DE BION - [Eu não seria capaz de ver um regato com um fluxo plácido, sem o menor obstáculo que o perturbasse porque seria muito transparente. Mas se eu crio uma turbulência, colocando nele uma vara, então posso vê-lo. Se às vezes o barulho ensurdece, outras vezes pode trazer algo à tona. Mas me detive nisso, nessa frase que Melanie Klein usou comigo: "Psicanálise é um termo sem sentido. Mas está aí, disponível." É uma palavra em busca de um significado; um pensamento esperando por um pensador; um conceito aguardando por um conteúdo.]

BION - Ficou sem voz? Tome, aqui - chupe uma dessas pílulas psicanalíticas, devagar. Apenas deixe-a dissolver-se em sua mente. Ei! Você a engoliu! Não devia ter feito isso. Não vai te causar nenhum dano - só um pouco de dor no coração. Entretanto ela vai se espalhar pelo seu sistema e vai ser excretada pela sua mente, sem nenhum dano - como uísque, ou canela. 

ESTANISLAU – Eh... vou até o bar pegar um pouco de água.

MAITRE - Não se incomode, Sr. - tome, aqui está. Mas, senhor, se me permite, aqui entre nós, tenho uma curiosidade: não crês que ocorrem muitos diz-que-me-diz por aqui? Quer dizer, ao menos a mim, fica a impressão de que, especialmente quanto ao Freud, há muitos apropriamentos, ou muitos entendimentos, do que ele diria ou disse, não?

SILVIA BLEICHMAR -  [Desculpe, não pude deixar de ouvir] Pois é, é mesmo esta a vantagem dos vivos sobre os mortos: podemos discordar sem que nos repliquem, ou interpretar o que disseram sem que nos corrijam... um horrível privilégio que temos!

ESTANISLAU - Eu que o diga!

JANSY MELLO - [Sem estar buscando a última palavra... (i.e., espero que haja mais coisa depois, ou seja, discordância ou réplicas!)] Nós podemos nos aproveitar do legado que outros homens nos deixaram sem esse clima de competição velada devido a alguma sensação de que poderemos ir mais longe do que eles foram só porque deles discordamos, lhes replicamos e temos novas informações e recursos.  Os mortos disseram o que lhes foi possível dizer e se calaram (ou transitam em outros mundos que desconhecemos) e nossa vez de estacionarmos há de chegar... Diante do infinito, qualquer avanço da nossa parte ainda será algo muito pequeno. Confesso que o que acho ainda mais horrível do que não ser contestada pelos mortos é a falta de discordância dos vivos: quando isso ocorre sou eu quem se sente morta.

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Prescrito-Pós-escrito [À posteriori, estava lá: no silêncio ocupado]

PENSAMENTO DE FERENCZI – Queria tê-lo dito naquele momento em que nos calamos. Dito esta minha visão. “Convém conceber a análise como um processo evolutivo que se desenrola sob os nossos olhos, e não como o trabalho de um arquiteto que procura realizar um plano preconcebido. Que não nos deixemos levar, em circunstância nenhuma, a prometer ao analisando mais do que isto: se ele se submeter ao processo analítico, acabará sabendo muitíssimo mais sobre si mesmo; e se perseverar até o fim, poderá adaptar-se melhor às dificuldades inevitáveis da vida, e com uma distribuição mais justa de energia. A rigor, também lhe podemos dizer que não conhecemos tratamento dos distúrbios psiconeuróticos e do caráter que seja melhor e, sem dúvida, mais radical. Não lhe dissimularemos, em absoluto, a existência também de outros métodos que prometem esperanças de cura muito mais rápida e segura, e, no fundo de nós mesmos, rejubilamos quando ouvimos os pacientes dizerem que já seguiram, durante anos, tratamentos por métodos de sugestão, ergoterapia ou outros métodos de reforço da vontade; quando não, deixamos ao paciente a opção de experimentar um desses tratamentos tão promissores, antes de se entregar aos nossos cuidados. Mas não podemos deixar passar sem resposta a objeção habitualmente levantada pelos pacientes, a saber, que não acreditam no nosso método ou na nossa teoria. Explicamos desde o início que a nossa técnica renuncia por completo ao presente imerecido de tal confiança antecipada; o paciente só tem que acreditar em nós se as experiências do tratamento o justificarem. Mas não podemos anular uma outra objeção que consiste em dizer que remetemos assim a priori a responsabilidade de um eventual fracasso de tratamento à impaciência do doente e devemos deixar que ele decida se quer ou não, nessas condições difíceis, assumir o risco do tratamento. Se estas questões parciais não ficarem precisamente esclarecidas, desde o começo e nesse sentido, oferece-se à resistência do paciente as mais temíveis armas, que ele não deixará, cedo ou tarde, de utilizar contra os objetivos do tratamento e contra nós. Que não consintamos em nenhum desvio dessa base por qualquer questão, por mais assustadora que seja. ‘O tratamento tanto pode, portanto, durar dois, três, cinco, dez anos?’ perguntarão muitos pacientes com uma hostilidade visível. ‘Tudo isso é possível’, será a nossa resposta. ‘Mas, naturalmente, uma análise de dez anos equivale em termos práticos a um fracasso. Uma vez que nunca se pode apreciar de antemão a importância das dificuldades a superar, tampouco se pode prometer um resultado certo, e contentamo-nos em invocar o fato de que em muitos casos são suficientes períodos muito mais curtos. Mas como você vive na crença, segundo parece, de que os médicos adoram fazer prognósticos favoráveis e, além disso, como já certamente ouviu muitas opiniões desfavoráveis sobre a teoria e a técnica da psicanálise ou como as escutará daqui a pouco, é preferível que, do seu ponto de vista, considere esse tratamento uma experiência ousada que lhe custará muito esforço, tempo e dinheiro; se, apesar de tudo isso, quer tentar essa experiência conosco, deve fazê-lo depender, portanto, do seu grau de sofrimento. Em todo caso, reflita bem antes de começar: começar sem a intenção séria de perseverar, apesar de agravamentos inevitáveis, só acrescentará uma nova decepção àquelas que já sofreu ’.”

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Texto produzido por Estanislau Alves da Silva Filho, analista da rede de atendimento do Elabora Psicanálise.

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As falas deste texto são verossímeis ou ligeiramente modificadas, adaptadas, sendo encontradas à seguir.

REFERÊNCIAS
 
BLEICHMAR, Silvia. Clínica psicanalítica e neogênese. São Paulo: Annablume, 2005 [p. 91 e p. 101]
BION, WR. "Atenção e Interpretação: uma aproximação científica à compreensão interna na psicnálise e nos grupos". Como terminam as Análises, textos reunidos pela Associação Mundial de Psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995.
BION - Conferências brasileira I - [conferencias bras. 1 p. 51] - Conversando com Bion, p. 145
CALLIGARIS, Contardo. in Didier-weill, A. (organizador). Fim de uma Análise, Finalidade da Psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1993. p. 74.
FERENCZI, Transferência e introjeção - p. 109
FERENCZI - Prolongamentos da Técnica Ativa [1921] - Dificuldades técnicas de uma análise de histeria [1919] - Contraindicações da técnica ativa [1926]
FERENCZI - O problema do fim da análise [1927]
FERENCZI -Prolongamentos da técnica ativa, Obras Completas, livro III.
FERENCZI – A elasticidade da técnica – obras completas 4 – 1928 [p. 33]
FREUD [biografo] volume 2 obras completas - estudos sobre histeria
FREUD [berheim] um estudo autobiográfico - v 20
KEHL, Maria Rita - O tempo e o cão p. 218
KLEIN, M. Sobre os critérios para o término de uma psicanálise (1950)
LACAN - Felicidade - (LACAN, 1975, p. 11) ______________ Conferência aos estudantes. Cidade: Yale University Press, 1975.
LACAN - Introdução ao comentário de Jean Hypolite [p. 374 escritos]
LACAN, J. Sem 3
MELLO, Jansy B. S. & Humberto H. S. Mello - o texto contou com a direta participação de Jansy B S Mello.
MEYER, Luiz. Sobre o Encontro Internacional: Donald Meltzer. SBPSP Boletim Mensal. Agosto de 2008 - Disponível em: <http://www.sbpsp.org.br/sitein ternosbpsp/boletins/08-08/ editorial.htm >
MEG HARRIS - http://www.artlit.info/pdfs/Me ltzerIntro.pdf
Erik Erikson, em seu livro Identidade, juventude e crise, descreve a seguinte situação ocorrida com Freud.
"Certa vez, perguntaram a Freud o que uma pessoa normal devia ser capaz de fazer bem. O indagador provavelmente esperava uma resposta complicada, profunda. Mas Freud simplesmente disse Lieben und arbeiten (amar e trabalhar). Essa fórmula simples merece ser examinada; quanto mais você refletir sobre ela, mais ela se tornará profunda."
MILLER - As contra-indicações ao tratamento psicanalítico - orientação lacaniana
 [Marcus André Vieira - O corpo falante - revista Cult 211 ano 19 abril 2016]
NOGUEIRA, Marcos Eduardo. Freud, o duplo de Goethe - http://pepsic.bvsalud.org/scie lo.php?script=sci_arttext&pid= S0102-73952008000100009 -
PENHA, João. Períodos filosóficos. 3. ed. São Paulo: Ática,1994.
PETOT, Jean-Michel. Melanie Klein II: o ego e o bom objeto - 1932-1960. São Paulo: Perspetiva, 1992. (p. 175)
[ROUDINESCO, p. 82-83, 2011 - Lacan, a despeito de tudo e de todos]
SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios.
SOLER, Collete. A psicanálise na civilização. Rio de Janeiro: Contra-Capa, 1998.Em 1958, Lacan, citado por Soler (1998, p.46) disse algo surpreendente: “ a psicanálise não se recusa a prometer felicidade”.
WINNICOTT - O brincar e a realidade
WINNICOTT - tudo começa em casa - p.12 - p. 3 Família e o desenvolvimento individual 28 e 30
VERÍSSIMO, Luis Fernando - O analista de bagé - https://rubem.wordpress.com/gr andes-cronicas-brasileiras/lui s-fernando-verissimo/
 

Acomodações provisórias

 

Ao olhar no espelho, nos reconhecemos nesta imagem? O corpo e a nossa posição subjetiva no mundo: qual a relação entre eles? Estamos des/acomodados em nosso corpo? Como ocupamos os espaços na nossa vida? Escolhemos em nome próprio?

Uma boa referência para pensarmos essas questões é o documentário Laerte-se*. Trabalho rico de Eliane Brum e Lygia Barbosa da Silva sobre Laerte Coutinho, cartunista que há alguns anos está num processo belo e corajoso de mudança. Mudança de que? De corpo? De sexo? De posição frente ao que a sociedade espera dele a partir de seu sexo? Poderíamos dizer, de forma mais objetiva, que é uma mudança de identidade de gênero, mas não, melhor deixar em aberto, assim como o próprio Laerte propõe, não se trata de ser homem ou mulher, trata-se de uma busca. E que busca seria essa?

Ao longo do documentário, a relação entre a subjetividade, o corpo, a casa e o trabalho de Laerte, vai sendo explorada de modo sutil, e podemos perceber um fio que vai fazendo conexões e dando forma a uma complexa trama que é a pessoa, neste caso, Laerte. No início do filme, Laerte fala de um estado “provisório-eterno”, referindo-se ao modo como habita a casa onde mora há doze anos. Há algo de maravilhoso nisso! Falar da casa é também falar do corpo, falar de si. Podemos fazer do corpo nossa casa, habitando-a, apropriando-se dela, ou não. Fazer dele nossa imagem, nos reconhecendo nela ou não. Mas o que seria não se reconhecer nesta imagem?

Segundo uma das perspectivas da Psicanálise, “estamos inscritos num campo de linguagem”. Isso significa que, antes do nascimento, já existimos no pensamento de alguém. Somos imaginados e até viramos personagem de uma história. Podemos ser um herói ou um vilão, uma benção ou uma maldição, um amigo ou um inimigo, de acordo com os desejos, medos, sonhos e fantasias desse alguém que vai nos dando uma primeira forma, uma primeira roupagem, uma primeira morada.

Essa imagem, produzida pelo desejo do outro, será lançada em nossa direção. Imagem e desejo que são fundamentais, pois servirão de alicerce para a construção de uma estrutura. De nossa estrutura psíquica, de nosso esquema corporal, de nós. Uma ‘habitação provisória', tomando emprestado o termo de Laerte, necessária para o início do nosso desenvolvimento. Um início que não nos dá muita escolha e, no máximo, berraremos contrariados - serão as doses de amor que facilitarão as acomodações.

À medida que crescemos, tendemos a nos sentir cada vez mais estranhos dentro dessa morada. Estranhamento que pode se expressar no corpo como uma pressão, uma excitação, uma dor, e produzir estados emocionais como angústia, tristeza, euforia, e muito mais. Estados que podem nos paralisar ou nos impulsionar.

Sentir-se estranho num lugar conhecido, muitas vezes nos mobiliza movimentos de adequação. Cremos que se nos ajustarmos suficientemente, encontraremos a felicidade. Nos sentiremos completos! Será?! Mas, e se todo esse desconforto nos levar a outro caminho, o de questionar este lugar? Abre-se uma nova possibilidade. Temos então, duas saídas: ou ficamos tentando nos ajustar incessantemente a esta imagem, ou partimos em busca de novas acomodações.  

Mas que acomodações nos servirão? O que me resta se não sou o que esperam de mim? Não haverá uma casa à vista, apenas um caminho pela frente, uma busca, um estado “provisório eterno”, um vir-a-ser. Este desconhecido fala de outra posição subjetiva, diferente daquela que estamos habituados a ficar. Definitivamente, não é um lugar fácil, mas é lá que a possibilidade de se desejar verdadeiramente pode surgir.

Surgem muitas questões. O que eu quero ser? Quem eu me permito ser? Tenho direito de ser e fazer o que eu quiser? Estou seguro? Eu me sustento nessa ou naquela escolha?

Estar fisicamente no mundo exige uma dose de segurança”, reflete Laerte, que ao pensar na possibilidade de fazer uma mudança em seu corpo, se faz quatro perguntas: Eu quero? Eu posso? Eu preciso? Eu devo? Ele consegue responder as três primeiras, mas se enrosca na quarta. A quarta "diz respeito ao olhar do outro", diz ele. E, sim, o olhar do outro estará sempre ali.   

Pois é, apesar de buscarmos um lugar cada vez mais próprio, há sempre o desejo de um outro atravessando esta relação que estabelecemos com nosso corpo, com nossa casa, com nosso trabalho, com nosso modo de ser e estar no mundo.  Nos deparamos com conflitos. Tempos de guerra e tempos de paz se intercalam em nossa existência.  

Mudar de lugar, de posição, mudar algo em si, implica em algo muito maior que uma simples ação. Algo que fala da relação que estabelecemos com o outro, com o mundo. “O corpo é uma parte de uma negociação complicada, diz Laerte”.

O corpo, como fronteira entre o Eu e o mundo, dá contorno à nossa forma e explicita o tipo de transação que estabelecemos com ele. Então, a questão que se coloca é: Quanto as transformações que promovemos em nós mesmos, em nosso corpo, em nossa vida, estão em função de uma posição subjetiva própria, de uma nova transação com o mundo, ou quanto elas estão na direção do olhar/desejo do outro, de forma repetida? Corpos desejantes ou corpos capturados?  

 

Texto produzido por Vivian Sayuri Teixeira da Silva, analista da rede de atendimento do Elabora Psicanálise.

 

*O documentário "Laerte-se" está disponível no Netflix. Vale a pena!

 

Vivian Sayuri Teixeira da Silva

Vivian é graduada em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Inicia sua formação em Psicanálise no Instituto Sedes Sapientae em 2007. Conclui o curso de aprimoramento - Fundamentos da Psicanálise - no Departamento de Formação em Psicanálise. Atualmente faz o curso de especialização em Psicanálise no Departamento de Psicanálise. 
Sua atuação clínica teve início em 2007. Foi terapeuta estagiária e voluntária na Clinica do Instituto Sedes Sapientae e no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. 
Atende crianças, adolescentes e adultos em seu consultório e é terapeuta do Projeto COMPOR, na Clínica do Instituto Sedes Sapientae. 

O material dos sonhos

sonhos psicanálise
todos os espíritos dissipam-se no ar, no ar impalpável
e como altivos palácios, dissolvem-se sem deixar vestígios
Somos dessa matéria de que os sonhos são feitos
e a nossa breve vida é circundada pelo sono
— Shakespeare, A Tempestade

Um oficial, com uma capa vermelha, corria atrás dela na rua. Ela fugia dele, e subia correndo os degraus, e ele sempre atrás. Ofegante, chegou a sua casa, bateu a porta atrás de si e trancou-a. Ele permaneceu do lado de fora e, quando ela olhou através da vigia da porta, ele estava sentado num banco e chorava...

Ele encontrou sua irmã em companhia de duas amigas que eram, também elas, irmãs. Cumprimentou com um aperto de mão a ambas, mas não a própria irmã...

Dois enfermeiros a seguravam fortemente, com mais força do que o necessário, enquanto o terceiro, aparentemente o doutor, preparava uma seringa com líquido branco quase incolor. Ela estava petrificada, mas não se deixava dominar. Chutou um aqui e outro ali, mas no fim o médico conseguiu proceder com a injeção que a tranquilizou e botou-a para dormir - não sem antes, muito assepticamente jogar fora a seringa, passar um pouco de álcool no ponto perfurado e limpar todo o local...

Eu estava em um ônibus à caminho do trabalho, quando assaltantes entraram e renderam a todos. Eles queriam que o veículo continuasse em movimento para disfarçar, enquanto pegavam as coisas dos passageiros. Foi quando me levantei e coloquei minha carteira para fora da janela, pensando que se fosse para perder a carteira, preferia que não fosse para eles. Estava preparado para jogá-la o mais longe o possível...

Sonhei que cuidava de um passarinho de asas quebradas, até que ele se recuperou e voltou a voar. Sonhei que estava caindo. Sonhei que perdia os dentes. Sonhei que estava voando. Sonhei com um sino badalando... e acordei com o despertador tocando!

Talvez não haja nada mais famoso no edifício psicanalítico que a inaugural alcunha da Interpretação dos Sonhos, titulação esta atribuída ao livro de Freud cuja data escolhida de publicação foi o ano de 1900. Nele se encontram os estudos e descobertas do autor com relação à temática, em um nítido esforço de retirar das mãos dos charlatões e mesmo do senso mais comum - bem como dos médicos neuropsiquiatras e filósofos da época também -, o domínio do entendimento onírico, que previa o sonho ora como premonição, mensagem de espíritos, anúncios proféticos, ora como tendo cada fragmento simbólico próprio um determinado significado específico, válido igualmente para todas as pessoas. A briga foi renhida, e o triunfo médico-religioso não tardou a se mostrar, bastante evidente nas interessantes e atuais bibliografias psicofisiológicas e de cunho exotérico tão presentes nas estantes das livrarias. Isso não quer dizer que nada tenha sobrado do percurso freudiano. Muito pelo contrário! Mas não estou me referindo aos aproveitamentos que vez ou outra aparecem nas revistas cientificamente especializadas, dizendo coisas como 'descobertas recentes das neurociências mostram que Freud estava certo'. Tento me referir ao curioso efeito que a própria obra do autor teve sobre ele mesmo, remontando-o à sua própria fundação e, uma vez mais, contrariando o que ele mesmo buscava escrever, a saber: um livro que ensinasse a serem os sonhos interpretados. Mas espera, calma, vamos com calma. Pensemos no que seria o sonho.

Freud, nesse primeiro momento, comungava com o Talmude (livro da sabedoria judaica) que há séculos sentenciava que "todo sonho que não se interpreta é uma carta que fica sem ser aberta". Isso não quer dizer que ele estava em total desacordo com o potencial curativo ou criativo dos sonhos, coisas que continuadores de sua obra tais como Ferenczi e Winnicott fizeram questão de privilegiar em termos de 'elaboração psíquica'; que o sonho fosse uma encenação dos aspectos da vida de uma pessoa, isso em nada incomodava Freud. Apenas que ele estava realmente preocupado com a perspectiva de o sonho direcionar-se à apresentação de uma realização de desejo - um desejo, desde sempre, infindável. Freud pensava em como as coisas apareciam nos sonhos de modos disfarçados, como que em jornais em épocas de ditadura que não podem exprimir suas opiniões políticas senão por meio de alegorias e alusões escondidas. Um desejo estaria sempre por lá, a espreita, mas vestido em roupas descaracterizantes, uma vez que geralmente tratam-se de vontades inaceitáveis à consciência moral da própria pessoa. Incapaz de surgir de um jeito, a Coisa Freudiana viria de outro. E assim o autor descreveu modos de simbolismo e substituição, condensação e deslocamento, nos quais, por exemplo, certas imagens surgiam no lugar de outras (às vezes uma imagem representava uma variedade de outras de uma vez só), e partes eram tomadas pelo todo. Isso quer dizer que os sentidos não eram simples e diretos. Sonhar com um cavalo selvagem poderia querer dizer uma completa outra coisa que não um cavalo selvagem. Poderia ter que ver com uma relação de um sujeito com seu pai garanhão. Poderia ter que ver com força e impetuosidade ou mesmo, o oposto, medo e fraqueza. Tudo dependeria das associações que se aplicariam ao tal conteúdo do sonho. E eis aqui um ponto-chave: porque um sonho, em si, não quer dizer nada. Ele simplesmente é já um dizer, apreciado já num momento secundário chamado relato do sonho. A questão da psicanálise é favorecer para que a associação livre, que é o sonho que sucede o sonho, chegue a ser, como rodapé, mais interessante que o texto. São as associações mais que os 'sonhos' que nos interessam. E, mais uma vez, aqui, a outra virada-chave: valerá que chamemos esse dizer-que-vai-se-dando também de sonho, porque é dele que de fato recolheremos os efeitos.

Um sonho, para a psicanálise, não é aquele processo fisiológico que grande parte dos mamíferos realiza ao fechar os olhos e atingir ondas REM. E o sonho tampouco é aquela massa figurativa surrealista que nos esforçamos por degustar ao abrir os olhos. O sonho, para a psicanálise, pode ser qualquer coisa. Pode ser um pensamento, pode ser um raciocínio, pode ser uma ação, pode ser um objeto, pode ser a morte, pode ser um significante que se cria, pode até ser um sonho mesmo. O sonho que nos interessa é aquilo que opera sobre o sujeito, empurrando-o até mais perto de sua fundação. É o processo (dito psicanalítico) que estará acontecendo quando o sentido dado pelo analisante ao sonho - o que significa que é ele quem interpreta, e não o analista -, quando este sentido junto com o sentido de tudo o mais que se liga ao sonho, que foi associado a ele: quando tudo isso, que é sonho sobre sonho, que é o sonhar ali se dando, quando isto, assim querido e crido objeto não de análise, mas objeto capaz de operar sobre o sujeito, revelando-o então, ao fim, como um sonhador, um algo sonhado pelo sonho próprio e que só o foi num depois. Digo, um sujeito que é só ao fim revelado, por seu próprio sonho, como um efeito do que sonhou, sem que antes estivesse lá. Um sujeito que é poema e não poeta, que é produto e não produtor. Pois, que ao associar e deixar-se sofrer os efeitos do que disse, do que sonhou, sem se esquivar, sem se pensar enganado, e sem estar sob total controle, eis o produto do sonhar: o sujeito ao sonho.

Texto produzido por Estanislau Alves da Silva Filho, analista da Rede de Atendimento do Elabora Psicanálise.

(autor que, por sua vez, torna-se produto do que produziu)

 

Vivian Sayuri Teixeira da Silva

Vivian é graduada em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Inicia sua formação em Psicanálise no Instituto Sedes Sapientae em 2007. Conclui o curso de aprimoramento - Fundamentos da Psicanálise - no Departamento de Formação em Psicanálise. Atualmente faz o curso de especialização em Psicanálise no Departamento de Psicanálise. 
Sua atuação clínica teve início em 2007. Foi terapeuta estagiária e voluntária na Clinica do Instituto Sedes Sapientae e no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. 
Atende crianças, adolescentes e adultos em seu consultório e é terapeuta do Projeto COMPOR, na Clínica do Instituto Sedes Sapientae. 

Narcisismo, meu amor

Mesmo sentado em um banco dos réus é sempre interessante ouvir falar da gente.
— Albert Camus 
Nenhum lugar pode ser realmente interessante se eu não frequento ele.
— Augusto Branco

 

Dia destes, à caminho do consultório, uma curiosa dúvida se apresentou a mim: 'desculpe, mas o que é narcisismo?' Ela chegou como que de surpresa, da boca de uma interessada senhora que vinha sentada acompanhando minha metroviária viagem pela leitura de um livro cuja capa trazia em letras garrafais uma tal alcunha: 'NARCISISMO'. Divertida situação, e que logo me fez sentir-me despreparado para simplesmente responder tão prontamente. Não que não conhecesse certas variações teóricas psicanalíticas relacionadas ao tema, que não tivesse estudado umas tantas páginas de livros e livros que tratam do assunto e de suas nuances e complexidades e tudo o mais [de processos psíquicos normais e patológicos, narcisismos primário e secundário, etc.]; não é isso. É que justa e especificamente, senti a dificuldade de ter que sintetizar e tornar algo no meio dessas coisas compreensível e clarificado, de modo a ofertar à interpelante questionadora algum esboço de retorno pelo devida indagação.
 
Resolvi arriscar: 'É o investimento afetivo que alguém tem em si mesmo, durante toda a vida, desde o nascimento.' 
'Investimento afetivo?', disse a senhora em tom irresoluto. 
'Sim, algo como amor próprio', repliquei. 
'Amor próprio eu entendo; já investimento afetivo... Bem, aqui cheguei à minha estação, obrigada!'
Devolvi-lhe um sorriso e despedimo-nos silenciosamente.

Mas continuei pensando na questão, e em como seria se ela, interlocutora, tivesse proposto um 'E que mais?', após a primeira devolutiva. 'Que mais além de amor próprio?' Será que eu falaria para ela algo sobre o mito de Narciso, que apaixonado pela sua própria imagem se afogou no lago? Será que apostaria numa aproximação pelo senso mais comum e convocaria o mandamento de Jesus, de 'ame ao próximo como a ti mesmo', para em seguida tentar dizer que somente alguém que se ama de verdade é que pode dar a outro um vivo amor? Ou será que valeria entrar em uma elucubração social relacionada ao individualismo e ao egocentrismo crescentes e impulsionados pelas tecnologias e meios de consumo atuais? Não consegui me decidir.

Pouco depois, chegando ao consultório e encontrando dois colegas analistas, resolvi incluí-los no dilema: 'como vocês responderiam à senhora?' Ambos partiram do mito de Narciso para dizer o que lhes ocorria. O primeiro ponderou: 'narcisismo é um elemento da mente que presente desde sempre serve para (1) os pais amarem seus filhos, (2) os bebês amarem a si mesmos e se reconhecerem como pessoas, e (3), quando em excesso, conduz a adoecimentos mais ou menos intensos, de acordo com o tanto de perda de si em si'. O outro disse: 'para a psicanálise, seria o processo de estimar-se a si, de olhar para si, muitas vezes deixando de olhar para todo o resto, possivelmente atropelando-o ao colocar-se na frente'. 

Gostei das ideias, e agradeci-lhes a atenção, enquanto dirigia-me a minha sala para aguardar o cliente. Sentei-me na larga poltrona e notei que ainda restavam alguns minutos até a hora da sessão. E com o livro ainda em mãos, por que não uma última revisada nesta temática de até então? E com distinção, o livro trazia uma breve categorização que não se pretenderia absoluta: haveria um narcisismo saudável, um narcisismo destrutivo e aquele relativo à uma fase do desenvolvimento, todos igualmente presentes na vida de cada um. O narcisismo saudável se refere àquela necessária dose de amor próprio que nos possibilita levantar todos os dias e suportar as desestimulantes agruras do dia-a-dia. O destrutivo estaria mais relacionado àquilo ou àquele a quem costumamos chamar de narcisista, aquela pessoa desagradável, inconveniente, que só fala de si mesmo e não tem consideração nem respeito por ninguém. Quanto à etapa desenvolvimental, a ela caberia a tarefa de proteger, organizar e integrar a imagem corporal e a identidade de si, como um momento em que a criança, amada por seus pais, consegue desfrutar sadiamente de sua espontaneidade e energia: por exemplo, um menino de 3 anos saltando de um sofá para outro, gritando "olha como eu pulo alto!" [claro, não precisa ser assim; este exemplo vale apenas como ilustração que contrasta com um outro estado: talvez houvesse um problema caso a criança possuísse um sentimento de vergonha muito intensa ou mesmo uma aversão a si, não conseguindo manifestar uma maior dedicação a si]

5 minutos faltantes. Penso que posso matar este tempinho. Leio a introdução, que diz algo como: "O narcisismo começa nos espelhos - no espelho que é a mãe, cujos olhos cintilantes e sorriso receptivo refletem o encanto pelo filho; o 'salão dos espelhos' sedutores mas claustrofóbicos dos pais superprotetores; o espelho frio e sem vida que o suicida encara num banheiro vazio; a lâmina de água que se desfaz em milhares de formas quando Narciso, em vão, se aproxima para tocar o seu reflexo." Reflito: Sim, narcisismo é espelho, é imagem de mim. Mais que isso, é fazer com isso, fazer com essa imagem. Fazê-la para lá e para cá. Fazê-la operar, funcionar. Pra se reconhecer sem maior se estranhar e poder dar 'Bom Dia!' e pagar promissórias, que sejam promessas e não só estórias. Enfim, este verso em prosa, harmonia de opostos, me acalmou. Começamos a sessão.

[O livro em questão é o volume 11 da coleção Conceitos de Psicanálise, da Revista Viver Mente e Cérebro, intitulado 'Narcisismo' e escrito inspiradamente por Jeremy Holmes (publicado em 2005, no Rio de Janeiro pela Relume Dumará/Ediouro e em São Paulo pela Segmento Duetto). E para maiores e mais profundos estudos, vale mencionar o livro "Narcisismos" de Oscar Miguelez (lançado em 2007 pela editora Escuta), que se debruça minuciosamente pelas diferentes acepções que tal termo adquire na obra de Freud e mesmo na psicanálise, explicando e discutindo rigorosamente as suas variações consequentes, tanto na clínica quanto na historiografia. [De fato, Oscar sugere que tenhamos cuidado com a banalização e o achatamento do conceito, como se ele pudesse ser reduzido a um sinônimo de 'egoísmo' ou 'egocentrismo' - algo que parece acontecer, por exemplo, quando, ao descrever as personalidades narcísicas muito estudadas pelos americanos, cria-se o equívoco de se pensar que haveriam outras que não o fossem. E, ademais, ele nos lembra que, em se tratando de uma complexa articulação conceitual entre vários termos como libido, pulsão, eu, auto-erotismo, outro, o 'narcisismo' está longe de ser uma clara unanimidade em diferentes escolas psicanalíticas.]

Texto produzido por Elabora Psicanálise Acessível.

Nanci Shirazawa

Psicanalista e psicóloga (CRP 06/59756) graduada pela Universidade Paulista de São Paulo, com MBA RH pela FIA USP. É especialista em Teoria Psicanalítica pela PUC SP e participou de grupos de estudos sobre Psicanálise. Foi executiva em grandes empresas e, há alguns anos, realizou sua própria transição de carreira. Fez Formação em Psicanálise pelo Instituto Sedes Sapientiae, trabalhou na ONG Semear com atendimento a crianças em situação de abrigamento e profissionais de abrigos e foi terapeuta no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. Atualmente, é psicanalista, atende adolescentes e adultos em consultório particular, além de psicoterapeuta no projeto COMPOR, na Clínica do Instituto Sedes Sapientiae.

O que é Psicanálise?

Estes são os quatro capítulos de uma excelente série de vídeos produzidos pelo Freud Museum London, com o intuito de facilitar os primeiros encontros com o pensamento de Freud. O Elabora valoriza movimentos como esse, de tornar acessível o contato do público em geral com a psicanálise, por isso decidimos colaborar traduzindo este projeto para a nossa língua portuguesa. Em retribuição, a equipe do Museu nos enviou os vídeos originais para  conjuntamente ampliarmos a divulgação.

Aproveitem!

Equipe Elabora Psicanálise Acessível.

Capítulo 1 - A psicanálise é esquisita?
NESTE EPISÓDIO:
A psicanálise é esquisita?
Uma cura pela fala
O inconsciente
O ego não é mestre em sua própria casa
A psicanálise e a "abordagem cognitiva"

Capítulo 3 - O Complexo de édipo.

NESTE EPISÓDIO:
O mundo emocional das crianças
Sua Majestade, o Bebê
A mãe como primeiro objeto de amor
É algo sexual?
Ciúmes, rivalidade, ódio e angústia
O papel do pai
Gênero: Freud não pensava que você simplesmente nasceu 'um garoto' ou 'uma garota'
Não há resolução completa do Complexo de Édipo
É uma marca para toda nossa vida

Capítulo 2 - A Sexualidade.
NESTE EPISÓDIO:
Um conceito ampliado de sexualidade
A sexualidade infantil
A perversão é de nascença
O normal e o anormal
Os estágios psicossexuais do desenvolvimento: oral, anal, fálico
A repressão
Sexualidade e Sintomas

Capítulo 4 - O Id, Ego e superego.

NESTE EPISÓDIO:
Um eu dividido
Id, Ego, Superego
Por que Freud desenvolveu um novo modelo?
Anjos e demônios
Pessoas falham nos seus ideais morais
Um cavalo e um cavaleiro
O ego é como um político
O objetivo da análise é fazer com que o ego deixe de ser tão tolo

Nina Lira

Graduada pela USP e psicanalista pelo Departamento de Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Foi psicoterapeuta no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas em São Paulo e pesquisadora pela UNIFESP em projeto sobre (Re)configurações das Políticas Nacionais de Saúde, encomendado pelo Ministério da Saúde. Atualmente atende jovens e adultos em consultório particular e é uma das responsáveis pelo dispositivo clínico do Grupo de Acolhimento da Clínica Psicológica do Instituto Sedes. Entre outros trabalhos, traduziu o livro da psicanalista inglesa Meg Harris Williams, pelaKarnac Books Ltda.

Conhece a ética psicanalítica?

O analista não está um passo à frente do seu cliente, mas, sim, sempre, um passo atrás.

Qual ética estaria por trás da atuação psicanalítica? Seria a ética do sigilo – que preservaria reservadas as nossas confidências mais secretas? Seria a ética do silêncio – que manteria em suspense e em suspensão os nossos dizeres em cada sessão? Ou, talvez, a ética da atenção – porque nos sentimos ouvidos e acompanhados neste percurso, no mínimo, inusitado? Pois que certamente se trata de uma aventura por lugares inexplorados, por recônditos raros, ainda que comumente revelem-se como estranhos familiares. Mas fixemo-nos à ética: que saberes, se é que se pode denominá-los assim, sustentariam esta prática?

Sim, ‘prática’, eis uma palavra-chave, já que vale diferenciar saberes mais conceituais e intelectuais de saberes mais práticos e operacionais. Por exemplo, a Ciência ou a Filosofia são ricas em produções e discussões bastante vigorosas e esclarecedoras no âmbito do conhecimento das coisas (como a descoberta de que pinguins antárticos podem defecar a uma distância de 40 centímetros, ou como o debate sobre a existência transubjetiva do espírito do transmodernismo reflexo), mas que não necessariamente envolvem qualquer mudança no comportamento diário de nossas vidas ou afazeres. Quem já participou de um debate estético sobre Arte ou natureza também reconhece os ganhos ‘espirituais’ de tais conversações, e sabe inclusive que um dos motivos de seus prazeres é o de não existir neles nenhuma implicação moral que precise nos conduzir a isto ou àquilo. Note-se que não se está dizendo que não existam insights possíveis nestas elucubrações. O que interessa aqui é diferenciar conhecimentos que estão no campo do saber e conhecimentos que estão no campo do fazer; distinguir âmbitos que valorizam as pessoas sobretudo pelo que elas sabem, de outro em que o interessante é o que elas querem.

Há saberes que são transmissíveis. Há saberes que são delegáveis. Há saberes que são suscitáveis. Como no Educar, no Governar e no ‘Amar’. Cada uma destas coisas tem uma ética, um proceder, uma forma de operar e um estilo de intentar. Mas Psicanálise não é uma forma de ensino, ainda que nela existam aprendizagens. Também não é uma forma de governo, um exercício de um poder, ainda que tais elementos surjam e apresentem-se em suas engrenagens. Tampouco é um jogo de sedução, ainda que as engrenagens citadas por vezes sejam rodadas por um certo tipo de amor. Não, ela, em si, não é isso, mas presta-se a tais coisas, no sentido de que tudo isso participa da relação analítica. Só que, se estes regimes não são preponderantes, é muito exatamente pela existência de uma ética bastante fina – alguns vão dizer, até mesmo, afinada. Mas afinada com o quê?

Bem, pode-se antecipar que nosso papel como psicanalistas não é o de desejar algo para alguém, mas ser aquele graças a quem o cliente possa chegar até seu desejo. E também que a finalidade de uma análise não é a de que o sujeito saiba explicar melhor as razões de seu sofrimento, e sim que, menos zeloso da integridade do seu Eu, menos temeroso das manifestações do inconsciente, possa levar menos a sério suas pretensões e deixar de se torturar por seus tropeços.

Consegue-se captar a sutileza da relação psicanalítica com o saber? Percebam que o saber não é o objeto, não é o objetivo. Não se busca a construção de um tipo de saber maior e mais eficiente. E nem é o caso de um saber que o analista sabe antecipadamente e oferecerá ao analisando para que este consiga ‘chegar lá’. O analista não está um passo à frente do seu cliente, mas, sim, sempre, um passo atrás. E é nesse ‘estranho’ passo atrás que ele propulsionará o trabalho de seu analisando – pois, sim, é este último que irá trabalhar! Sendo também o único a de fato desfrutar do produto e das consequências de seu trabalho.

 Não falar pelo outro é parte crucial da ética analítica, já que é somente em posição de agente de sua própria fala, agente de seu próprio trabalho, que é possível ao analisando apropriar-se de seus deslizes. Ademais, sequer é possível que um faça pelo outro (embora muitas Escolas de pensamento e de terapêutica pensem que isso seja possível). Aliás, nada mais terrível em termos de perda de si que um outro tomando as rédeas pela gente. Não, para a psicanálise a criação de um analista no analisando é consequência ética fundamental: não para que o dito cujo passe a atender outros sujeitos em seu consultório, mas para que este possa se comprometer com a tarefa psíquica de investigação, onde a dúvida tem o papel crucial de abrir brechas em velhas certezas arraigadas. Claro, sem precisar elevar a dúvida à condição de deusa. É só que o objetivo analítico inclui uma diminuição da insistência das respostas prontas, da necessidade de explicações, ou melhor, da necessidade de ficar se explicando.

 A investigação analítica não é aquela das observações das reações, dos detalhes posturais ou do teor emocional. O que não quer dizer, mais uma vez, que estas manifestações não sejam levadas em conta, especialmente em casos de profundo sofrimento psíquico. Cuidados e delicadezas podem ser essenciais ao manejo de certas condições. Hospitalidade para com o desamparo e empatia com as modulações afetivas dos analisandos, afora a própria saúde do analista, também são princípios éticos neste campo. Mas isso não pode ser confundido com uma reposição da quantidade de amor e carinhos que faltaram, sabe-se lá, na infância, para que então o sujeito recompletado possa viver mais feliz.

 Pois, se há uma preocupação do analista em não responder a certas perguntas que o paciente lhe dirige, como “o que você quer de mim?”, ou “o que você deseja que eu seja, ou que eu faça, para que me torne amável?”, é justamente por haver essa sua ética do desejo, o que não exclui uma ética do cuidado. Tatear e sentir conjuntamente são exigências de uma prática que respeita o tempo ímpar de cada um, um tempo que não costuma seguir essa cronologia convencionada que tanto apreciamos em nossos relógios e calendários. E também, pode ser necessária a criação de um espaço criativo e de ‘brincadeiras’; não me refiro a um playground para crianças, mas à possibilidade de um analisante poder fazer troça de seu analista e a de este último de ser capaz de suportar ser feito de bobo, ou mesmo ser chamado de louco pelos nonsenses que costuma dizer (que carapaça ele irá ser vestido, não se sabe, mas pode ser bem deselegante simplesmente a recusar). Talvez, mais pontualmente, a simples condição de se sentirem à vontade o suficiente (não mais) e não-indiferentes à dura empreitada que almejam realizar.

 O psicanalista inglês, Wilfred Bion, dizia que ‘amor sem verdade não passa de uma paixão, e que verdade sem amor não passa de crueldade’. Talvez fosse possível parodiar que ética do cuidado sem ética do desejo seja apenas psicoterapia ou maternagem, ao passo que ética do desejo sem ética do cuidado não passe de exercício de resignação.

 Enfim, eis algo do que se poderia dizer assim, por hora, sobre ética psicanalítica (sob uma intentada ética de um bem-dizer), sobre essa indisciplinada disciplina que leva em conta e se pauta por um saber que não se sabe, a saber: o inconsciente. Sobre este, fica para uma próxima.

 

Texto produzido por Estanislau Alves da Silva Filho, analista da Rede de Atendimento do Elabora Psicanálise.

 

Psicanálise, Psicologia e Psiquiatria. Qual a diferença?

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Você já deve ter se questionado sobre a diferença entre psicanálise, psicologia e psiquiatria. E responder essa questão realmente não é uma tarefa simples, pois todas trabalham com questões da psique humana, todas tem um fazer clínico e todas tratam o sofrimento decorrente de algum mal estar mental ou emocional. Quando se está em sofrimento, o que mais se quer é que ele acabe, de modo que, num primeiro olhar, qualquer uma dessas especialidades poderia ser uma possibilidade. Mas, então, no que se diferenciam? Basicamente no entendimento de como funciona o psiquismo humano e, por isso, as propostas clínicas são muito diferentes, pois cada uma tem um modo de escuta e intervenção.

A psiquiatria é uma especialidade médica, trabalha com as referências de saúde e doença, normalidade e anormalidade, padrões que balizam o que seria uma patologia, inclusive trabalham com um manual que lista diferentes categorias de transtornos mentais e critérios para diagnosticá-los, o DSM (Manual Estatístico e Diagnóstico de Saúde Mental). A compreensão sobre a pessoa que está em sofrimento é determinada sob o ponto de vista do orgânico - do corpo - e da disfunção que esteja ocorrendo. Os psiquiatras, por serem médicos, têm a competência para prescrever psicofármacos no tratamento das patologias, o que pode ser um auxílio importante em casos mais graves, como o de angústias paralisantes e desorganizações da personalidade. Muitos psiquiatras costumam trabalhar em parceria com psicólogos e psicanalistas, por compreenderem a limitação da abordagem orgânica diante da complexidade do sintoma.

Quanto à psicologia e psicanálise, faremos uma comparação entre duas de suas linhas principais*: vamos nos ater à cognitiva comportamental quando falamos de psicologia, por ser a que mais se diferencia da psicanálise e ser a mais conhecida. E no caso da psicanálise, utilizaremos a abordagem freudiana, por também ser a mais conhecida e servir de base para todas as demais. Sendo assim, em quais aspectos se diferenciam de forma decisiva?

A psicologia tem como base de estudos a observação do comportamento humano. A partir dessa observação consegue estabelecer parâmetros de classificação e, nesse sentido, padrões de normalidade e anormalidade. O sintoma seria um problema por ser um desvio daquilo considerado normal, tal como trabalha a psiquiatria. Apesar da psicologia considerar a existência de algum tipo de inconsciência, a instância determinante para ela é a consciência. Seu fundamento clínico é o direcionamento da consciência, por meio de exercícios e técnicas específicas, a fim de corrigir e eliminar determinados desvios.

Segundo a teoria cognitiva, existem erros lógicos de processamento de informações sob a forma de pensamentos disfuncionais e distorções cognitivas, que são causas de síndromes e transtornos. Consideram-se os fatores relacionados ao problema, mas o objetivo imediato é o alivio do sintoma e a volta ao funcionamento antes da crise. Trabalha-se com aconselhamentos, técnicas de autocontrole, aprendizagem através de estímulos visando comportamentos desejados, treino de habilidades, além de técnicas cognitivo-comportamentais tais como exposição gradual, reforços, correções de crenças e pensamentos e manejo ambiental.  

A psicanálise, por sua vez, entende que o psiquismo humano é uma complexa trama imaginária, ou seja, uma rede de significações que atribuímos às coisas, constituída muito precocemente, a partir de ininterruptas experiências de frustração e satisfação com o ambiente e que produzem expectativas, desejos, medos e conflitos. A constituição do psiquismo sempre deixará marcas e sintomas, e estaremos sempre a lidar com nossa precariedade diante da vida. Não existe “a normalidade”.

Sob esta perspectiva, a singularidade de cada pessoa é privilegiada e os sintomas são expressões de conflitos que nos habitam, relacionados a desejos inconscientes e, portanto, falam de quem somos, são resultados da forma como pudemos lidar com a vida, de acordo com os recursos que tivemos. Mas, sem que possamos controlar, algumas vezes eles trazem sim muito sofrimento e limitam a vida: somatizações, comportamentos indesejados que se repetem ou angustias sem nome. Isso fala da existência, em todos nós, de uma dimensão desconhecida - o inconsciente - a qual não temos acesso direto, mas que mobiliza nossas ações e sonhos. Esse é um pressuposto essencial da psicanálise e fundamento clínico sobre o qual se dará o processo analítico.

O psicanalista possui um conhecimento sobre a dinâmica do psiquismo humano, além de uma competência específica, a escuta diferenciada, que lhe dá condições para acompanhar o paciente nessa descoberta. Empresta a si mesmo como participante no processo, pois o encontro psicanalítico se dá a partir da transferência, uma relação dinâmica e singular que se estabelece entre analista e analisando. Nesse processo a dimensão consciente está presente, mas, principalmente, abre-se espaço ao inconsciente, possibilitando que a trama imaginária tão particular possa surgir. Durante esse trabalho, o analisando pode entrar em contato com seus afetos, muitas vezes suprimidos, realizar novas elaborações, construir outras formas de se relacionar com as pessoas e ter condições para estar mais apto a lidar com os limites da vida.

Por mais que a análise possa gerar bem estar, a psicanálise não se restringe a isso, pois não tem a pretensão de direcionar a consciência para aquilo que seria o bom, o normal e o certo. Não há julgamentos. A ideia é que, através da experiência analítica a pessoa possa aproximar-se dos seus próprios desejos e passar a ser autora de sua vida, ou seja, não ficar submetida aos seus sintomas. O processo amplia a visão que temos de nós mesmos, e como consequência pode tornar a vida mais interessante e flexível.

Mas então, se estou sofrendo, se preciso de ajuda num determinado momento da vida, a quem devo procurar?

Como vimos, são três áreas que possuem pontos de interseção importantes, mas que têm cruciais distinções nas formas de entender a dinâmica psíquica do homem, os sintomas e a função da clínica. Com qual tipo de trabalho você se identifica mais? Qual parece fazer mais sentido para sua vida? A partir das respostas a essas questões, procure alguém ou alguma instituição que lhe inspire confiança. Espera-se que um bom profissional escute sua necessidade e proponha um trabalho ou então faça um encaminhamento.

Como saber se o profissional é bom? Apesar de a internet possibilitar maior acesso às informações, só há uma forma de “saber” se aquele profissional é o que vai conseguir lhe ajudar: por meio do encontro e do que ele terá provocado em você, portanto fique atento às suas próprias percepções e, caso sinta vontade, conheça outros profissionais. O processo terapêutico acontece desse encontro entre duas pessoas onde uma relação muito singular terá início, e só através dessa experiência será possível saber se aquele é o profissional que você procura. Este é o primeiro passo.

* Há diversas linhas dentro da psicologia, sendo as mais conhecidas: linha junguiana, Gestalt terapia, fenomenológica, cognitiva-comportamental, psicodrama. Na psicanálise: linhas baseadas em Freud, Lacan, Melanie Klein, Bion, Winnicot.

** Se quiser saber mais sobre a origem dessas três áreas de conhecimento, acesse o vídeo do psicanalista Christin Dunker. (https://www.youtube.com/watch?v=FjYvwYuCsDE)

 Texto produzido por Elabora Psicanálise Acessível.

 

Nanci Shirazawa

Psicanalista e psicóloga (CRP 06/59756) graduada pela Universidade Paulista de São Paulo, com MBA RH pela FIA USP. É especialista em Teoria Psicanalítica pela PUC SP e participou de grupos de estudos sobre Psicanálise. Foi executiva em grandes empresas e, há alguns anos, realizou sua própria transição de carreira. Fez Formação em Psicanálise pelo Instituto Sedes Sapientiae, trabalhou na ONG Semear com atendimento a crianças em situação de abrigamento e profissionais de abrigos e foi terapeuta no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. Atualmente, é psicanalista, atende adolescentes e adultos em consultório particular, além de psicoterapeuta no projeto COMPOR, na Clínica do Instituto Sedes Sapientiae.

Fragmento do documentário "A primeira sessão de análise", do psicanalista francês Gerard Miller.

Fiz esse filme para explicar porque é que, um dia, tomamos a estranha decisão de ir visitar o outro lado do nosso próprio cenário
— Gerard Miller

Personalidades como Marie Darrieussecq, Carla Bruni-Sarkozy, Claude Chabrol, entre outras, falam dos seus receios antes de terem ido procurar um psicanalista.

Um tempo para análise

Quanto tempo vai levar para resolver meu problema?
Preciso resolver isso rápido! Não aguento mais!

Estas são falas frequentes, principalmente no início do processo de análise. Expressam urgência, pressa e angústia. É importante considerar que não são exclusivas dos consultórios de psicanálise, já que falam de uma urgência e uma necessidade de satisfação presentes no cotidiano de todos nós. Trabalhamos com prazos cada vez mais curtos, tentando atender uma demanda voraz e insaciável, tudo é “para ontem”. Vivemos correndo e com a sensação de que estamos sempre devendo alguma coisa.

Mas esta urgência também se refere ao fato de que ninguém gosta de sofrer! Há urgência pra se livrar de uma dor, de um desconforto, de uma pressão. Tentar livrar-se de algo que ameaça a vida é um impulso natural de qualquer ser vivo. Neste sentido, associamos a dor psíquica à dor física, e esperamos que sejam tratados do mesmo modo.

Quando estamos doentes, com gripe, por exemplo, sabemos que levaremos em torno de uma semana para melhorar. Ou no caso de uma doença mais grave, temos ao menos uma explicação sobre o mal que nos aflige. Isso nos tranquiliza, pois há uma sensação de mínimo controle sobre a situação. Mas será que quando adoecemos psiquicamente temos como saber quando vamos melhorar?

Se uma febre pode ser uma reação do nosso organismo a uma bactéria, com um sintoma psíquico é diferente.

Se uma febre pode ser uma reação do nosso organismo a uma bactéria, com um sintoma psíquico é diferente. Ele é resultante da interação entre nossas dimensões consciente e inconsciente. O psiquismo é composto por aquilo que temos acesso, como os pensamentos, lembranças, percepções, e que denominamos como o campo da consciência, mas também pelos impulsos reprimidos aos quais não temos acesso, pertencentes ao campo do inconsciente. O sintoma é formado, em algum momento da vida, com o objetivo de nos proteger de algo insuportável para a consciência. Ele é um “acordo” entre as duas dimensões: o conteúdo original fica recalcado no inconsciente, mas aparece na consciência de outra forma. Essa defesa, muitas vezes, é falha, pois alivia aquilo que é sentido como insuportável por um lado, mas pode gerar prejuízos por outro. Comportamentos obsessivos, fobias, dores conversivas, episódios de pânico, são exemplos disso.

A parte mais intrigante disso tudo é que o sintoma psíquico comunica algo que a pessoa não sabe dela mesma, por ela não ter acesso consciente àquilo. Nesse sentido, o sintoma é um problema, mas é também uma porta de acesso para o próprio sujeito. O sintoma tem a ver com a nossa história, de nossa família e de nossa cultura. Para a psicanálise, o sintoma é uma espécie de saída engenhosa do psiquismo da pessoa, para dar um destino àquilo que ele não está conseguindo dizer de outra forma.

Portanto, quando pensamos no tempo da análise, precisamos considerar que existe um trabalho muito específico a ser realizado entre analista e analisando; há que se olhar para o sintoma que foi criado e como ele foi sendo desenvolvido ao longo do tempo, pois isso diz respeito ao funcionamento psíquico específico daquele paciente. Muitas vezes o sintoma é uma verdadeira tábua de salvação para a pessoa e, por isso, é sentido como impossível de ser abandonado. A ideia é que o processo analítico seja uma oportunidade para que aquilo possa ser transformado em outra coisa, que não cause mais tanto sofrimento àquela pessoa.

um processo de análise também depende do desejo do paciente. Até onde ele quer e suporta ir neste percurso

Além disso, há que se considerar que um processo de análise também depende do desejo do paciente. Até onde ele quer e suporta ir neste percurso. Ele pode ir até o ponto em que se livra de um sintoma específico e isso lhe basta; pode querer continuar e avançar em outras questões por considerar a análise um espaço produtivo, assim como ele pode não querer mudar, às vezes inconscientemente; afinal de contas, a psicanálise trabalha com a premissa de que há uma parte de nós a qual não temos acesso direto e que mobiliza nossas ações, inclusive nos paralisando frente a boas oportunidades. Há quem fique em análise por alguns meses, há quem fique por um ano, há quem fique por anos, há quem encerre uma análise e comece outra. Depende de cada um. Depende daquele par: analista e analisando.

Em conclusão, mesmo que o paciente tenha urgência, ele pode intuir que aquele sofrimento, ali presente há tanto tempo, tão arraigado, não se transformará em um ou dois meses, mas que seguramente precisará de um tempo maior. Além do mais, ele vai sentindo os benefícios dessa escuta diferenciada que é a do espaço analítico.

Tempo não é dinheiro, é o tecido de nossa vida
— (Antônio Cândido de Mello e Souza)

Texto produzido por Elabora Psicanálise Acessível.

  

Vivian Sayuri Teixeira da Silva

Vivian é graduada em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Inicia sua formação em Psicanálise no Instituto Sedes Sapientae em 2007. Conclui o curso de aprimoramento - Fundamentos da Psicanálise - no Departamento de Formação em Psicanálise. Atualmente faz o curso de especialização em Psicanálise no Departamento de Psicanálise. 
Sua atuação clínica teve início em 2007. Foi terapeuta estagiária e voluntária na Clinica do Instituto Sedes Sapientae e no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. 
Atende crianças, adolescentes e adultos em seu consultório e é terapeuta do Projeto COMPOR, na Clínica do Instituto Sedes Sapientae. 

Crises de Pânico

Em psicanálise, a experiência do sujeito é única. Cada caso é um caso. Este vídeo aborda um relato de alguém que sofria ataques de pânico e que passou pela experiência de análise.

Vídeo: The School of Life
Tradução/Legendas: Elabora Psicanálise Acessível

Nina Lira

Graduada pela USP e psicanalista pelo Departamento de Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Foi psicoterapeuta no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas em São Paulo e pesquisadora pela UNIFESP em projeto sobre (Re)configurações das Políticas Nacionais de Saúde, encomendado pelo Ministério da Saúde. Atualmente atende jovens e adultos em consultório particular e é uma das responsáveis pelo dispositivo clínico do Grupo de Acolhimento da Clínica Psicológica do Instituto Sedes. Entre outros trabalhos, traduziu o livro da psicanalista inglesa Meg Harris Williams, pelaKarnac Books Ltda.

"Nossas inquietudes" - documentário traz testemunhos de quem já experimentou a análise.

O documentário “Nossas inquietudes” da Francesa Judith du Pasquier, onde ele aborda o tratamento psicanalítico por intermédio de seis testemunhos de fragmentos da experiência de análise. Seus protagonistas, misto explícito de atores e pessoas reais, com a força de seu relato, nos aproximam vivamente do coração dessa experiência, de seus efeitos na vida de cada um. Abordando questões sobre a angústia que a terapia provoca, o pagamento da analise, das intervenções do analista, o divã, o que levou cada um a buscar a analise e os ganhos que obtiveram.

“A análise é um troço inconcebível. Quando falamos com pessoas que não são, que eventualmente nunca falaram disso, quando dizemos que é possível se estabelecer um laço amoroso entre um cara que lhe ouve e voce, que se deixa, que se joga sobre um divã, é surrealista esse negócio. É incrível. E no entanto é assim que acontece. É como se, nesta experiência amorosa, conseguíssemos captar aquilo que nos faz sofrer.

O grande Tabu: psicanálise é para loucos?

Entrevista gravada com Contardo Calligaris, na Barraca do Saldanha, e exibida no dia 25/04/2009, no programa "Manos e Minas" da TV Cultura. Mais bate-papos interessantes no site do Programa Interferencia.

"Qualquer coisa que começa com psi, que seja psiquiatra, psicólogo ou psicanalista, têm a idéia de que isso é coisa para loucos. Se sentem, de alguma forma, desqualificados pelo fato de ir procurar um profissional desse tipo".

Nanci Shirazawa

Psicanalista e psicóloga (CRP 06/59756) graduada pela Universidade Paulista de São Paulo, com MBA RH pela FIA USP. É especialista em Teoria Psicanalítica pela PUC SP e participou de grupos de estudos sobre Psicanálise. Foi executiva em grandes empresas e, há alguns anos, realizou sua própria transição de carreira. Fez Formação em Psicanálise pelo Instituto Sedes Sapientiae, trabalhou na ONG Semear com atendimento a crianças em situação de abrigamento e profissionais de abrigos e foi terapeuta no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. Atualmente, é psicanalista, atende adolescentes e adultos em consultório particular, além de psicoterapeuta no projeto COMPOR, na Clínica do Instituto Sedes Sapientiae.

Sem ingenuidade, a psicanálise olha para o homem e seus afetos, para além das suas camadas moralizantes.

Maria Lúcia Homem esclarece que o olhar da psicanálise sobre as paixões humanas se dá a partir da possibilidade de "refletir o humano nele mesmo". Deixa-se de lado os valores morais em busca de uma outra forma de "repensar os afetos".

"Todos somos, e tivemos que ser algum dia, invejosos."