O material dos sonhos

sonhos psicanálise
todos os espíritos dissipam-se no ar, no ar impalpável
e como altivos palácios, dissolvem-se sem deixar vestígios
Somos dessa matéria de que os sonhos são feitos
e a nossa breve vida é circundada pelo sono
— Shakespeare, A Tempestade

Um oficial, com uma capa vermelha, corria atrás dela na rua. Ela fugia dele, e subia correndo os degraus, e ele sempre atrás. Ofegante, chegou a sua casa, bateu a porta atrás de si e trancou-a. Ele permaneceu do lado de fora e, quando ela olhou através da vigia da porta, ele estava sentado num banco e chorava...

Ele encontrou sua irmã em companhia de duas amigas que eram, também elas, irmãs. Cumprimentou com um aperto de mão a ambas, mas não a própria irmã...

Dois enfermeiros a seguravam fortemente, com mais força do que o necessário, enquanto o terceiro, aparentemente o doutor, preparava uma seringa com líquido branco quase incolor. Ela estava petrificada, mas não se deixava dominar. Chutou um aqui e outro ali, mas no fim o médico conseguiu proceder com a injeção que a tranquilizou e botou-a para dormir - não sem antes, muito assepticamente jogar fora a seringa, passar um pouco de álcool no ponto perfurado e limpar todo o local...

Eu estava em um ônibus à caminho do trabalho, quando assaltantes entraram e renderam a todos. Eles queriam que o veículo continuasse em movimento para disfarçar, enquanto pegavam as coisas dos passageiros. Foi quando me levantei e coloquei minha carteira para fora da janela, pensando que se fosse para perder a carteira, preferia que não fosse para eles. Estava preparado para jogá-la o mais longe o possível...

Sonhei que cuidava de um passarinho de asas quebradas, até que ele se recuperou e voltou a voar. Sonhei que estava caindo. Sonhei que perdia os dentes. Sonhei que estava voando. Sonhei com um sino badalando... e acordei com o despertador tocando!

Talvez não haja nada mais famoso no edifício psicanalítico que a inaugural alcunha da Interpretação dos Sonhos, titulação esta atribuída ao livro de Freud cuja data escolhida de publicação foi o ano de 1900. Nele se encontram os estudos e descobertas do autor com relação à temática, em um nítido esforço de retirar das mãos dos charlatões e mesmo do senso mais comum - bem como dos médicos neuropsiquiatras e filósofos da época também -, o domínio do entendimento onírico, que previa o sonho ora como premonição, mensagem de espíritos, anúncios proféticos, ora como tendo cada fragmento simbólico próprio um determinado significado específico, válido igualmente para todas as pessoas. A briga foi renhida, e o triunfo médico-religioso não tardou a se mostrar, bastante evidente nas interessantes e atuais bibliografias psicofisiológicas e de cunho exotérico tão presentes nas estantes das livrarias. Isso não quer dizer que nada tenha sobrado do percurso freudiano. Muito pelo contrário! Mas não estou me referindo aos aproveitamentos que vez ou outra aparecem nas revistas cientificamente especializadas, dizendo coisas como 'descobertas recentes das neurociências mostram que Freud estava certo'. Tento me referir ao curioso efeito que a própria obra do autor teve sobre ele mesmo, remontando-o à sua própria fundação e, uma vez mais, contrariando o que ele mesmo buscava escrever, a saber: um livro que ensinasse a serem os sonhos interpretados. Mas espera, calma, vamos com calma. Pensemos no que seria o sonho.

Freud, nesse primeiro momento, comungava com o Talmude (livro da sabedoria judaica) que há séculos sentenciava que "todo sonho que não se interpreta é uma carta que fica sem ser aberta". Isso não quer dizer que ele estava em total desacordo com o potencial curativo ou criativo dos sonhos, coisas que continuadores de sua obra tais como Ferenczi e Winnicott fizeram questão de privilegiar em termos de 'elaboração psíquica'; que o sonho fosse uma encenação dos aspectos da vida de uma pessoa, isso em nada incomodava Freud. Apenas que ele estava realmente preocupado com a perspectiva de o sonho direcionar-se à apresentação de uma realização de desejo - um desejo, desde sempre, infindável. Freud pensava em como as coisas apareciam nos sonhos de modos disfarçados, como que em jornais em épocas de ditadura que não podem exprimir suas opiniões políticas senão por meio de alegorias e alusões escondidas. Um desejo estaria sempre por lá, a espreita, mas vestido em roupas descaracterizantes, uma vez que geralmente tratam-se de vontades inaceitáveis à consciência moral da própria pessoa. Incapaz de surgir de um jeito, a Coisa Freudiana viria de outro. E assim o autor descreveu modos de simbolismo e substituição, condensação e deslocamento, nos quais, por exemplo, certas imagens surgiam no lugar de outras (às vezes uma imagem representava uma variedade de outras de uma vez só), e partes eram tomadas pelo todo. Isso quer dizer que os sentidos não eram simples e diretos. Sonhar com um cavalo selvagem poderia querer dizer uma completa outra coisa que não um cavalo selvagem. Poderia ter que ver com uma relação de um sujeito com seu pai garanhão. Poderia ter que ver com força e impetuosidade ou mesmo, o oposto, medo e fraqueza. Tudo dependeria das associações que se aplicariam ao tal conteúdo do sonho. E eis aqui um ponto-chave: porque um sonho, em si, não quer dizer nada. Ele simplesmente é já um dizer, apreciado já num momento secundário chamado relato do sonho. A questão da psicanálise é favorecer para que a associação livre, que é o sonho que sucede o sonho, chegue a ser, como rodapé, mais interessante que o texto. São as associações mais que os 'sonhos' que nos interessam. E, mais uma vez, aqui, a outra virada-chave: valerá que chamemos esse dizer-que-vai-se-dando também de sonho, porque é dele que de fato recolheremos os efeitos.

Um sonho, para a psicanálise, não é aquele processo fisiológico que grande parte dos mamíferos realiza ao fechar os olhos e atingir ondas REM. E o sonho tampouco é aquela massa figurativa surrealista que nos esforçamos por degustar ao abrir os olhos. O sonho, para a psicanálise, pode ser qualquer coisa. Pode ser um pensamento, pode ser um raciocínio, pode ser uma ação, pode ser um objeto, pode ser a morte, pode ser um significante que se cria, pode até ser um sonho mesmo. O sonho que nos interessa é aquilo que opera sobre o sujeito, empurrando-o até mais perto de sua fundação. É o processo (dito psicanalítico) que estará acontecendo quando o sentido dado pelo analisante ao sonho - o que significa que é ele quem interpreta, e não o analista -, quando este sentido junto com o sentido de tudo o mais que se liga ao sonho, que foi associado a ele: quando tudo isso, que é sonho sobre sonho, que é o sonhar ali se dando, quando isto, assim querido e crido objeto não de análise, mas objeto capaz de operar sobre o sujeito, revelando-o então, ao fim, como um sonhador, um algo sonhado pelo sonho próprio e que só o foi num depois. Digo, um sujeito que é só ao fim revelado, por seu próprio sonho, como um efeito do que sonhou, sem que antes estivesse lá. Um sujeito que é poema e não poeta, que é produto e não produtor. Pois, que ao associar e deixar-se sofrer os efeitos do que disse, do que sonhou, sem se esquivar, sem se pensar enganado, e sem estar sob total controle, eis o produto do sonhar: o sujeito ao sonho.

Texto produzido por Estanislau Alves da Silva Filho, analista da Rede de Atendimento do Elabora Psicanálise.

(autor que, por sua vez, torna-se produto do que produziu)

 

Vivian Sayuri Teixeira da Silva

Vivian é graduada em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Inicia sua formação em Psicanálise no Instituto Sedes Sapientae em 2007. Conclui o curso de aprimoramento - Fundamentos da Psicanálise - no Departamento de Formação em Psicanálise. Atualmente faz o curso de especialização em Psicanálise no Departamento de Psicanálise. 
Sua atuação clínica teve início em 2007. Foi terapeuta estagiária e voluntária na Clinica do Instituto Sedes Sapientae e no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. 
Atende crianças, adolescentes e adultos em seu consultório e é terapeuta do Projeto COMPOR, na Clínica do Instituto Sedes Sapientae.