Narcisismo, meu amor

Mesmo sentado em um banco dos réus é sempre interessante ouvir falar da gente.
— Albert Camus 
Nenhum lugar pode ser realmente interessante se eu não frequento ele.
— Augusto Branco

 

Dia destes, à caminho do consultório, uma curiosa dúvida se apresentou a mim: 'desculpe, mas o que é narcisismo?' Ela chegou como que de surpresa, da boca de uma interessada senhora que vinha sentada acompanhando minha metroviária viagem pela leitura de um livro cuja capa trazia em letras garrafais uma tal alcunha: 'NARCISISMO'. Divertida situação, e que logo me fez sentir-me despreparado para simplesmente responder tão prontamente. Não que não conhecesse certas variações teóricas psicanalíticas relacionadas ao tema, que não tivesse estudado umas tantas páginas de livros e livros que tratam do assunto e de suas nuances e complexidades e tudo o mais [de processos psíquicos normais e patológicos, narcisismos primário e secundário, etc.]; não é isso. É que justa e especificamente, senti a dificuldade de ter que sintetizar e tornar algo no meio dessas coisas compreensível e clarificado, de modo a ofertar à interpelante questionadora algum esboço de retorno pelo devida indagação.
 
Resolvi arriscar: 'É o investimento afetivo que alguém tem em si mesmo, durante toda a vida, desde o nascimento.' 
'Investimento afetivo?', disse a senhora em tom irresoluto. 
'Sim, algo como amor próprio', repliquei. 
'Amor próprio eu entendo; já investimento afetivo... Bem, aqui cheguei à minha estação, obrigada!'
Devolvi-lhe um sorriso e despedimo-nos silenciosamente.

Mas continuei pensando na questão, e em como seria se ela, interlocutora, tivesse proposto um 'E que mais?', após a primeira devolutiva. 'Que mais além de amor próprio?' Será que eu falaria para ela algo sobre o mito de Narciso, que apaixonado pela sua própria imagem se afogou no lago? Será que apostaria numa aproximação pelo senso mais comum e convocaria o mandamento de Jesus, de 'ame ao próximo como a ti mesmo', para em seguida tentar dizer que somente alguém que se ama de verdade é que pode dar a outro um vivo amor? Ou será que valeria entrar em uma elucubração social relacionada ao individualismo e ao egocentrismo crescentes e impulsionados pelas tecnologias e meios de consumo atuais? Não consegui me decidir.

Pouco depois, chegando ao consultório e encontrando dois colegas analistas, resolvi incluí-los no dilema: 'como vocês responderiam à senhora?' Ambos partiram do mito de Narciso para dizer o que lhes ocorria. O primeiro ponderou: 'narcisismo é um elemento da mente que presente desde sempre serve para (1) os pais amarem seus filhos, (2) os bebês amarem a si mesmos e se reconhecerem como pessoas, e (3), quando em excesso, conduz a adoecimentos mais ou menos intensos, de acordo com o tanto de perda de si em si'. O outro disse: 'para a psicanálise, seria o processo de estimar-se a si, de olhar para si, muitas vezes deixando de olhar para todo o resto, possivelmente atropelando-o ao colocar-se na frente'. 

Gostei das ideias, e agradeci-lhes a atenção, enquanto dirigia-me a minha sala para aguardar o cliente. Sentei-me na larga poltrona e notei que ainda restavam alguns minutos até a hora da sessão. E com o livro ainda em mãos, por que não uma última revisada nesta temática de até então? E com distinção, o livro trazia uma breve categorização que não se pretenderia absoluta: haveria um narcisismo saudável, um narcisismo destrutivo e aquele relativo à uma fase do desenvolvimento, todos igualmente presentes na vida de cada um. O narcisismo saudável se refere àquela necessária dose de amor próprio que nos possibilita levantar todos os dias e suportar as desestimulantes agruras do dia-a-dia. O destrutivo estaria mais relacionado àquilo ou àquele a quem costumamos chamar de narcisista, aquela pessoa desagradável, inconveniente, que só fala de si mesmo e não tem consideração nem respeito por ninguém. Quanto à etapa desenvolvimental, a ela caberia a tarefa de proteger, organizar e integrar a imagem corporal e a identidade de si, como um momento em que a criança, amada por seus pais, consegue desfrutar sadiamente de sua espontaneidade e energia: por exemplo, um menino de 3 anos saltando de um sofá para outro, gritando "olha como eu pulo alto!" [claro, não precisa ser assim; este exemplo vale apenas como ilustração que contrasta com um outro estado: talvez houvesse um problema caso a criança possuísse um sentimento de vergonha muito intensa ou mesmo uma aversão a si, não conseguindo manifestar uma maior dedicação a si]

5 minutos faltantes. Penso que posso matar este tempinho. Leio a introdução, que diz algo como: "O narcisismo começa nos espelhos - no espelho que é a mãe, cujos olhos cintilantes e sorriso receptivo refletem o encanto pelo filho; o 'salão dos espelhos' sedutores mas claustrofóbicos dos pais superprotetores; o espelho frio e sem vida que o suicida encara num banheiro vazio; a lâmina de água que se desfaz em milhares de formas quando Narciso, em vão, se aproxima para tocar o seu reflexo." Reflito: Sim, narcisismo é espelho, é imagem de mim. Mais que isso, é fazer com isso, fazer com essa imagem. Fazê-la para lá e para cá. Fazê-la operar, funcionar. Pra se reconhecer sem maior se estranhar e poder dar 'Bom Dia!' e pagar promissórias, que sejam promessas e não só estórias. Enfim, este verso em prosa, harmonia de opostos, me acalmou. Começamos a sessão.

[O livro em questão é o volume 11 da coleção Conceitos de Psicanálise, da Revista Viver Mente e Cérebro, intitulado 'Narcisismo' e escrito inspiradamente por Jeremy Holmes (publicado em 2005, no Rio de Janeiro pela Relume Dumará/Ediouro e em São Paulo pela Segmento Duetto). E para maiores e mais profundos estudos, vale mencionar o livro "Narcisismos" de Oscar Miguelez (lançado em 2007 pela editora Escuta), que se debruça minuciosamente pelas diferentes acepções que tal termo adquire na obra de Freud e mesmo na psicanálise, explicando e discutindo rigorosamente as suas variações consequentes, tanto na clínica quanto na historiografia. [De fato, Oscar sugere que tenhamos cuidado com a banalização e o achatamento do conceito, como se ele pudesse ser reduzido a um sinônimo de 'egoísmo' ou 'egocentrismo' - algo que parece acontecer, por exemplo, quando, ao descrever as personalidades narcísicas muito estudadas pelos americanos, cria-se o equívoco de se pensar que haveriam outras que não o fossem. E, ademais, ele nos lembra que, em se tratando de uma complexa articulação conceitual entre vários termos como libido, pulsão, eu, auto-erotismo, outro, o 'narcisismo' está longe de ser uma clara unanimidade em diferentes escolas psicanalíticas.]

Texto produzido por Elabora Psicanálise Acessível.

Nanci Shirazawa

Psicanalista e psicóloga (CRP 06/59756) graduada pela Universidade Paulista de São Paulo, com MBA RH pela FIA USP. É especialista em Teoria Psicanalítica pela PUC SP e participou de grupos de estudos sobre Psicanálise. Foi executiva em grandes empresas e, há alguns anos, realizou sua própria transição de carreira. Fez Formação em Psicanálise pelo Instituto Sedes Sapientiae, trabalhou na ONG Semear com atendimento a crianças em situação de abrigamento e profissionais de abrigos e foi terapeuta no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. Atualmente, é psicanalista, atende adolescentes e adultos em consultório particular, além de psicoterapeuta no projeto COMPOR, na Clínica do Instituto Sedes Sapientiae.