Acomodações provisórias

 

Ao olhar no espelho, nos reconhecemos nesta imagem? O corpo e a nossa posição subjetiva no mundo: qual a relação entre eles? Estamos des/acomodados em nosso corpo? Como ocupamos os espaços na nossa vida? Escolhemos em nome próprio?

Uma boa referência para pensarmos essas questões é o documentário Laerte-se*. Trabalho rico de Eliane Brum e Lygia Barbosa da Silva sobre Laerte Coutinho, cartunista que há alguns anos está num processo belo e corajoso de mudança. Mudança de que? De corpo? De sexo? De posição frente ao que a sociedade espera dele a partir de seu sexo? Poderíamos dizer, de forma mais objetiva, que é uma mudança de identidade de gênero, mas não, melhor deixar em aberto, assim como o próprio Laerte propõe, não se trata de ser homem ou mulher, trata-se de uma busca. E que busca seria essa?

Ao longo do documentário, a relação entre a subjetividade, o corpo, a casa e o trabalho de Laerte, vai sendo explorada de modo sutil, e podemos perceber um fio que vai fazendo conexões e dando forma a uma complexa trama que é a pessoa, neste caso, Laerte. No início do filme, Laerte fala de um estado “provisório-eterno”, referindo-se ao modo como habita a casa onde mora há doze anos. Há algo de maravilhoso nisso! Falar da casa é também falar do corpo, falar de si. Podemos fazer do corpo nossa casa, habitando-a, apropriando-se dela, ou não. Fazer dele nossa imagem, nos reconhecendo nela ou não. Mas o que seria não se reconhecer nesta imagem?

Segundo uma das perspectivas da Psicanálise, “estamos inscritos num campo de linguagem”. Isso significa que, antes do nascimento, já existimos no pensamento de alguém. Somos imaginados e até viramos personagem de uma história. Podemos ser um herói ou um vilão, uma benção ou uma maldição, um amigo ou um inimigo, de acordo com os desejos, medos, sonhos e fantasias desse alguém que vai nos dando uma primeira forma, uma primeira roupagem, uma primeira morada.

Essa imagem, produzida pelo desejo do outro, será lançada em nossa direção. Imagem e desejo que são fundamentais, pois servirão de alicerce para a construção de uma estrutura. De nossa estrutura psíquica, de nosso esquema corporal, de nós. Uma ‘habitação provisória', tomando emprestado o termo de Laerte, necessária para o início do nosso desenvolvimento. Um início que não nos dá muita escolha e, no máximo, berraremos contrariados - serão as doses de amor que facilitarão as acomodações.

À medida que crescemos, tendemos a nos sentir cada vez mais estranhos dentro dessa morada. Estranhamento que pode se expressar no corpo como uma pressão, uma excitação, uma dor, e produzir estados emocionais como angústia, tristeza, euforia, e muito mais. Estados que podem nos paralisar ou nos impulsionar.

Sentir-se estranho num lugar conhecido, muitas vezes nos mobiliza movimentos de adequação. Cremos que se nos ajustarmos suficientemente, encontraremos a felicidade. Nos sentiremos completos! Será?! Mas, e se todo esse desconforto nos levar a outro caminho, o de questionar este lugar? Abre-se uma nova possibilidade. Temos então, duas saídas: ou ficamos tentando nos ajustar incessantemente a esta imagem, ou partimos em busca de novas acomodações.  

Mas que acomodações nos servirão? O que me resta se não sou o que esperam de mim? Não haverá uma casa à vista, apenas um caminho pela frente, uma busca, um estado “provisório eterno”, um vir-a-ser. Este desconhecido fala de outra posição subjetiva, diferente daquela que estamos habituados a ficar. Definitivamente, não é um lugar fácil, mas é lá que a possibilidade de se desejar verdadeiramente pode surgir.

Surgem muitas questões. O que eu quero ser? Quem eu me permito ser? Tenho direito de ser e fazer o que eu quiser? Estou seguro? Eu me sustento nessa ou naquela escolha?

Estar fisicamente no mundo exige uma dose de segurança”, reflete Laerte, que ao pensar na possibilidade de fazer uma mudança em seu corpo, se faz quatro perguntas: Eu quero? Eu posso? Eu preciso? Eu devo? Ele consegue responder as três primeiras, mas se enrosca na quarta. A quarta "diz respeito ao olhar do outro", diz ele. E, sim, o olhar do outro estará sempre ali.   

Pois é, apesar de buscarmos um lugar cada vez mais próprio, há sempre o desejo de um outro atravessando esta relação que estabelecemos com nosso corpo, com nossa casa, com nosso trabalho, com nosso modo de ser e estar no mundo.  Nos deparamos com conflitos. Tempos de guerra e tempos de paz se intercalam em nossa existência.  

Mudar de lugar, de posição, mudar algo em si, implica em algo muito maior que uma simples ação. Algo que fala da relação que estabelecemos com o outro, com o mundo. “O corpo é uma parte de uma negociação complicada, diz Laerte”.

O corpo, como fronteira entre o Eu e o mundo, dá contorno à nossa forma e explicita o tipo de transação que estabelecemos com ele. Então, a questão que se coloca é: Quanto as transformações que promovemos em nós mesmos, em nosso corpo, em nossa vida, estão em função de uma posição subjetiva própria, de uma nova transação com o mundo, ou quanto elas estão na direção do olhar/desejo do outro, de forma repetida? Corpos desejantes ou corpos capturados?  

 

Texto produzido por Vivian Sayuri Teixeira da Silva, analista da rede de atendimento do Elabora Psicanálise.

 

*O documentário "Laerte-se" está disponível no Netflix. Vale a pena!

 

Vivian Sayuri Teixeira da Silva

Vivian é graduada em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Inicia sua formação em Psicanálise no Instituto Sedes Sapientae em 2007. Conclui o curso de aprimoramento - Fundamentos da Psicanálise - no Departamento de Formação em Psicanálise. Atualmente faz o curso de especialização em Psicanálise no Departamento de Psicanálise. 
Sua atuação clínica teve início em 2007. Foi terapeuta estagiária e voluntária na Clinica do Instituto Sedes Sapientae e no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. 
Atende crianças, adolescentes e adultos em seu consultório e é terapeuta do Projeto COMPOR, na Clínica do Instituto Sedes Sapientae.