Conversas em Grupo (Um_a_parte)

(Havia uma conversa. Haveria que haver! Se dava em um salão antigo. Mas a coisa acontecia meio fora de tempo, sabe? Consegue imaginar? Diferentes pessoas e momentos, encontrando-se numa certa empreitada, digamos, coletiva. Não: pública! Quase-pública, quase publicável. E, mesmo assim, aqui está ela. Ou um à parte dela. Diríamos, um diferente bate-papo que descontraidamente traz algo da história da psicanálise, bem como de suas multiplicidades teórico-práticas. Informativo e sugestivamente reflexivo, até o fim. Que me diz?)

inconsciente.jpg

BREUER - ... ela descrevia esse método, de modo apropriado e à sério, como uma "talking cure" (cura pela fala), ao mesmo tempo em que se referia a ele, em tom de brincadeira, como "chimney-sweeping" (limpeza de chaminé).

ANNA - O senhor acreditava que cada sintoma histérico individual desaparecia, de forma imediata e permanente, tanto quando conseguia-se trazer à luz com toda clareza a lembrança do acontecimento motivador, assim avivando igualmente o afeto que o acompanhava, quanto quando o paciente descrevia o tal episódio da maneira mais detalhada possível, traduzindo o afeto em palavras.

BIÓGRAFO - À época usava-se a hipnose, e com ela buscava-se permitir que o fato estrangulado encontrasse saída através da fala, na chamada ab-reação do afeto, submetendo-se a representação à correção associativa por meio da sua introdução na consciência normal (sob hipnose leve), ou mesmo através de uma eliminação por sugestão direta do médico, caso se obtivesse um sonambulismo acompanhado de amnésia.

FREUD - Exatamente, a talking cure, de início, era sob hipnose - assim rebaixava-se a censura. Mas recordo-me de um caso, uma histérica altamente dotada, uma mulher bem nascida, que me fora confiada porque ninguém sabia o que fazer com ela. Pela influência hipnótica eu lhe tornara possível levar uma existência tolerável, e sempre fui capaz de tirá-la da miséria de sua condição. Mas ela sempre recaía após breve tempo, e em minha ignorância atribuía isso ao fato de que sua hipnose jamais alcançara a fase sonambúlica.

BERHEIM - Você fala daquela paciente que trouxe até mim, na clínica em Nancy? 

FREUD - Exato!

BERHEIM - Tentei várias vezes provocar um tal estado nela, sem qualquer sucesso. Confesso que meus maiores êxitos terapêuticos por meio da sugestão só foram alcançados em minha clínica hospitalar, e não com os meus pacientes particulares.

FERENCZI - Minhas primeiras experiências com hipnose, efetuadas quando ainda era estudante, nos empregados da livraria do meu pai, foram todas bem-sucedidas, sem exceção; mas não posso dizer o mesmo dos meus resultados posteriores. É bem verdade que eu já não tinha aquela confiança absoluta em mim mesmo que só a ignorância pode conceder. E como já me preocupava com o alívio e a cura dos sintomas...

FREUD - Nos estudos sobre a Histeria, repetidas vezes, quando prometia ajuda ou alívio pelo tratamento catártico, tinha de ouvir de meus doentes a objeção: "Você mesmo diz que meus padecimentos provavelmente se relacionam com as circunstâncias e os acontecimentos de minha vida: coisas que você nada pode mudar; de que maneira, então, quer me ajudar?" A isso eu conseguia responder: "De fato, não duvido que seria mais fácil para o destino do que para mim eliminar seu sofrimento: mas você se convencerá de que muito se ganha se conseguirmos transformar sua miséria histérica em infelicidade comum. Desta última você poderá se defender melhor com uma vida psíquica restabelecida."

BIÓGRAFO - Os resultados práticos do processo catártico foram excelentes. Os seus defeitos, que se tornaram evidentes depois, eram os mesmos de todas as formas de hipnose: os resultados não eram permanentes e eram especialmente dependentes da relação pessoal entre o paciente e o médico. Uma "purificação" do sintoma não é realmente suficiente para transformar a realidade psíquica de onde o sintoma tira sua consistência e origem.

PACIENTE - Espera aí, você disse "substituir as grandes crises de sofrimento histérico por um sofrimento cotidiano e suportável"? Isso parece pouco consolador... o que eu quero é um final feliz!

LACAN - Mas a psicanálise não se recusa a oferecer felicidade.

BIÓGRAFO - Estamos nos adiantando. O termo "psicanálise" terá sido inventado após Freud ter continuado sozinho com suas investigações, substituindo o método hipnótico pela "associação livre", que é a regra fundamental da análise. 

GOETHE - O termo "psicanálise" não foi inspirado na química de minhas Afinidades Eletivas? Em meu texto denominado 'Ifigênia em Táuride' descrevi a cura à base da palavra de meu personagem Orestes.

BIÓGRAFO - Espere, isso não é o que...

LACAN - Freud disse que o inconsciente é atemporal. O considerarei em termos de tempo lógico.

HEGEL - Você está se referindo ao que eu disse sobre a prioridade da lógica sobre a cronologia? [Eu costumava dar um exemplo como o do nexo entre paternidade e filiação: as duas condições são rigorosamente simultâneas no tempo: sou pai no exato momento em que meu filho nasce. No entanto, no plano lógico, eu o precedo - eu existo antes de meu filho]

BIÓGRAFO - Mas...

EU MESMO - Blá, que a psicanálise é herdeira da hipnose todo mundo já sabe. Deixa eles seguirem, vamos ver no que isso vai dar.

BIÓGRAFO - Eu já sei onde isso vai dar: sessões curtas! Ultra-curtas!

ANALISANTE - Sessões de tempo variável.

WINNICOTT - Interessante. Relatei experiências de sessões de duas e até três horas.

FERENCZI - Vocês estão falando de variações técnicas quanto ao tempo? Também experimentei certas medidas, mas somente em casos 'excepcionais', como a fixação de um prazo final para o tratamento ou injunções diretas [como a proibição de uma certa postura em uma paciente], com o intuito de acelerar a investigação do material psíquico inconsciente e como uma forma de superar a estagnação da análise. Desde então fui bastante criticado por meus colegas. Cheguei a reconsiderar algumas de minhas colocações, mas... já era tarde demais.

FREUD - Senhores, a discussão do problema técnico de saber como acelerar o lento progresso de uma análise nos conduz a outra questão, mais profundamente interessante: existe algo que se possa chamar de término de uma análise — há alguma possibilidade de levar uma análise a tal término?

EU MESMO - A julgar pela conversa comum dos analistas, assim pareceria ser, já que frequentemente os ouvimos dizer, quando deploram ou desculpam as imperfeições reconhecidas de algum mortal seu colega: ‘Sua análise não foi terminada’ ou ‘ele nunca se analisou até o fim.’

FREUD - Claro, teríamos, primeiro, que decidir o que se quer dizer pela expressão ambígua ‘o término de uma análise’. De um ponto de vista prático, é fácil responder [darei aqui um pontapé na partida]. Uma análise termina quando analista e paciente deixam de encontrar-se para a sessão analítica, o que aconteceria quando duas condições fossem mais ou menos preenchidas: em primeiro lugar, que o paciente não mais esteja sofrendo de seus sintomas e tenha superado suas ansiedades e inibições; em segundo, que o analista julgue que foi tornado consciente tanto material reprimido, que foi explicada tanta coisa ininteligível, que foram vencidas tantas resistências internas, que não há necessidade de temer uma repetição do processo patológico em apreço.

KLEIN - Antes de terminar uma análise, tenho que me indagar se os conflitos e as ansiedades vivenciados durante o primeiro ano de vida foram suficientemente analisados e elaborados durante o curso do tratamento.

FERENCZI - A análise está verdadeiramente terminada quando não há dispensa por parte do médico nem por parte do paciente; a análise deve, por assim dizer, morrer de esgotamento, devendo o médico ser sempre o mais desconfiado dos dois e suspeitar de que o paciente quer salvar alguma coisa da sua neurose, quando exprime a vontade de partir. Um paciente verdadeiramente curado desliga-se da análise, lenta mas seguramente; por conseguinte, enquanto o paciente quiser vir, terá ainda um lugar na análise.

CONTARDO CALLIGARIS - Mas, escuta, o fim da análise não é como um ponto final na linha do tempo, e, sim, como alguma coisa incluída ao longo de todo o processo analítico, logicamente. É certo que o término é uma questão que diz respeito ao analisando, o que não quer dizer que o analista não esteja envolvido também.

BION - Quanto mais profunda é a investigação, mais claro fica que uma análise, por mais prolongada que ela seja, só pode ser o começo de uma busca. Prefiro entender que uma análise não termina nunca e que um dos seus sucessos é quando o analisando busca "por cada vez mais uma análise". E mais, sem esquecer, que o desejo de curar o paciente é um impulso a ser evitado!

JANSY MELLO - Aproveitando uma citação a Blanchot que tantas vezes o ouvi enunciar, Bion (e que, salvo engano, também foi mencionada na última conversa, certo?): "a resposta é a morte da curiosidade", gostaria de sugerir que façamos nesta frase a substituição da palavra original "resposta", pela palavra "cura", pois assim perceberemos melhor o quanto ter a cura como meta de uma análise pode ser empobrecedor para o paciente. Já tive oportunidade de experimentar como uma psicanálise mais profunda e "verdadeira" (sei que é uma questão polêmica essa, a da "psicanálise de verdade") só pode acontecer depois que o analisando se livrou das queixas que originalmente o levaram à análise - queixas essas que, tantas vezes, ocultavam outras que só então começaram a aflorar - e decidiu continuar a análise pelo que lhe parecia ser sua livre escolha de estar ali.

HUMBERTO HAYDT MELLO - Não é necessário um submarino para as investigações. Dá pra alcançar novas margens à nado mesmo, pela superfície.

LACAN - Justamente. Considero que uma análise não deve ser levada longe demais. Quando o analisante pensa que está feliz de viver, é o bastante.

ESTANISLAU - Feliz de viver? ... não poderia trazer uma formulação mais delimitável, por favor? 

LACAN - Havia uma fórmula introduzida nos primórdios de nosso ensino. O sujeito, dizíamos, começa a análise falando de si sem falar com vocês, ou falando com vocês sem falar de si. Quando puder falar de si com vocês, a análise estará terminada.

PACIENTE - O Freud não me diria isso.

ANALISTA DE BAGÉ - O que Freud diria tu não ia entender mesmo. Ou tu sabe alemão?

ERIK ERIKSON - Certa vez perguntaram a Freud o que uma pessoa normal deveria ser capaz de fazer bem. Freud simplesmente disse "Lieben und arbeiten" (amar e trabalhar).

FREUD - Acho que escrevi algo parecido em 1937... quando também descrevi o famoso gewachsener Fels(Grande Rochedo) da Castração. Um impasse. Um resto. Um incurável.

MELTZER - É nesse sentido que penso que o objetivo da psicanálise não seria o de curar os sintomas ou o de tornar o paciente respeitável, mas, sim, o de introduzir o paciente a si mesmo, para que ele possa digerir a verdade sobre si mesmo, o que, em seguida, permitirá que sua mente cresça. Vejo a psicanálise menos como "terapia" e mais como uma atividade que deveria apreender e descrever para o paciente o mundo em que ele vive, com o fim de dar-lhe uma oportunidade para conhecê-lo e, eventualmente, mudar.

MEG HARRIS - Essencialmente, o que o analisando aprende e adquire com o analista é a introjeção de um processo de auto-análise que, se genuíno, estará suficientemente estabelecido para continuar funcionando. Uma pessoa nunca pode ser curada de ser ela mesma.

JANSY MELLO – E nem ser curada da vida...

BIÓGRAFO - Auto-análise? Isso demanda uma extensa discussão, que se inicia com o próprio Freud confessando já em 1887, numa carta a Fliess, a impossibilidade de uma genuína auto-análise: "se fosse possível, não existiria neurose".

EU MESMO - Quem foi que chamou esse cara de volta?

BIÓGRAFO - Contudo, Freud (1914) chegou a preconizar a conveniência de se analisar os próprios sonhos ("talvez seja o suficiente para uma pessoa que sonhe com frequência e não seja muito anormal"), inclusive fazendo comentários elogiosos (1926) aos achados e ao modo sistemático do método de auto-análise de E. Pickworth Farrow. Nada obstante, já dizia (1912) que quando se tratava de uma análise de formação, era necessário uma outra pessoa, e mesmo (1935) que "na auto-análise o perigo de incompletude é grande", e "a pessoa logo se satisfazcom uma explicação parcial." O próprio Ferenczi aí ao lado escreveu uma carta a seu amigo Groddeck em 11 de outubro de 1922 descrevendo tal impossibilidade, e pontuando que a análise é um processo eminentemente social, que requer "pelo menos duas pessoas".

FERENCZI - Você não leu o que escrevi sobre isso em meu Diário Clínico, não é? Certos pontos são terríveis. Mas acho que resumiria dizendo que é um fato bem conhecido que a confissão feita a outra pessoa produz efeitos mais intensos e mais profundos do que a autoconfissão, o mesmo ocorrendo com a análise em relação à autoanálise.

JANSY MELLO - Falar em confissão nos conduz de volta à catarse, à "talking cure" e revaloriza a questão da culpabilidade que foi, durante tantos anos, um dos focos da análise, operando em detrimento de outros vértices de compreensão do mundo mental.

ESTANISLAU - Seja como for, a auto-análise levanta pontos interessantes. Primeiro porque ela pode ser entendida de várias formas. Segundo porque traz à tona algo de uma "dissociação instrumental", talvez algo que um analista lançasse mão durante uma análise. Mas acho que isso seria sair um pouco da questão... O que você acha, Winnicott?

WINNICOTT - Estava aqui pensando sobre a análise com crianças, sobre a conquista da "capacidade para estar só", sobre o resgate da possibilidade de brincar e mesmo sobre os estágios de desenvolvimento, da dependência absoluta à independência (que é sempre) relativa. [A maturidade individual implica movimento em direção à independência, mas não existe essa coisa chamada "independência". Seria nocivo para a saúde o fato de um indivíduo ficar isolado a ponto de se sentir independente e invulnerável. Se essa pessoa está viva, sem dúvida há dependência! Dependência da enfermeira de um sanatório ou da família.] ... Quer dizer, não queremos que as crianças sob nosso cuidado constituam-se em membros de uma entre duas categorias extremas: de um lado aqueles que, embora tendo seus interesses direcionados à comunidade, têm vida pessoal tão insatisfatória que não chegam a possuir um verdadeiro sentido do Si; de outro, aqueles que só obtêm sua satisfação pessoal à custa de negligenciar suas relações com a sociedade, ou talvez sob pena de tornarem-se anti-sociais ou loucos. Pois sabemos que as pessoas enquadradas em qualquer desses dois extremos são infelizes, e sofrem. Alguns só encontram sua expressão pessoal no ato de suicídio. Alguém os decepcionou, algo malogrou em seu ambiente circundante em um ou mais dos primeiros estágios de desenvolvimento; é difícil consertar as coisas numa data tão posterior.

JOHN RICKMAN - Insanidade é não ser capaz de encontrar alguém que te aguente.

WINNICOTT - Minha tese é que, na terapia, tentamos imitar o processo natural que caracteriza o comportamento de qualquer mãe em relação à sua criança. Se a tese estiver correta deduz-se que é o par mãe-criança que pode nos ensinar os princípios básicos sobre os quais deve fundar-se nosso trabalho terapêutico, quando estivermos tratando de crianças cuja primeira relação com a mãe não foi “boa o suficiente”, ou foi interrompida. [...]

BION - Realmente, o destino do analista é tornar sua própria existência desnecessária. É o mesmo destino, pode-se dizer, dos pais: quando criamos os filhos corretamente, estes não necessitam de pais. 

WINNICOTT - Mas estive só associando até aqui; permitam-me tentar dizer o que acho, o que penso mais pontualmente. Ao praticar psicanálise, tenho o propósito de: me manter vivo; me manter bem; me manter desperto. Objetivo ser eu mesmo e me portar bem. Uma vez iniciada uma análise, espero continuar com ela, sobreviver a ela e terminá-la. Gosto de fazer análise e sempre anseio pelo seu fim. A análise só pela análise para mim não tem sentido. Faço análise porque é do que o paciente necessita. Se o paciente não necessita análise, então faço alguma outra coisa. [...] Em geral, 

análise é para aqueles que a querem, necessitam e podem tolerá-la. [...] Se o objetivo continua a ser verbalizar a conscientização nascente em termos de posição em que o paciente nos coloca, então estamos praticando análise; se não, então somos analistas praticando outra coisa que acreditamos ser apropriada para a ocasião. E por que não haveria de ser assim?

LACAN – Creio que Melanie Klein nos mostrou uma valiosa variação destas coisas ao enfiar simbolismo no pequeno Dick. Ela já começa jogando imediatamente em cima dele as interpretações maiores. Ela o joga numa verbalização brutal do mito edípico, quase tão revoltante para nós quanto para qualquer leitor mais distante. Mas é certo que depois dessa intervenção alguma coisa se produz. Ela ousa falar com ele! Dick está lá como se ela não existisse, como se fosse um móvel, como se para ele houvesse lá uma realidade pura e simples – ele vive na realidade! – nem nomeada e nem nomeável. Pois digo que, problematizando a função da fala como capaz de constituir a realidade, ela ousa falar a um ser que literalmente não responde, e que suas intervenções com caráter de intrusão simbolizam uma relação efetiva de um ser, que passa então a ser nomeado, com um outro. Ela dá nomes ao que antes era só real (ou que “não-era”), e com isso lhe introduz aquilo que lhe possibilita fazer um apelo. E, no campo da fala, o apelo localiza o semelhante, intima-o a uma resposta e produz a possibilidade de recusa. É a partir daí que se estabelecem relações de dependência com o outro. Mme. Klein?

KLEIN - Ainda estou pensando sobre o que Freud disse aqui. Sei que apesar do progresso feito em nossa teoria e nossa técnica, devemos ter em mente as limitações da terapia psicanalítica. Cheguei mesmo a admitir a existência de contraindicações à nosso processo, quando não há "a capacidade de aceitar o que o analista pode oferecer". Sim, o êxito resulta num enriquecimento da personalidade, numa plenitude da vida de fantasias e da capacidade de vivenciar emoções livremente. Mas...

LACAN - Não devemos recuar diante dos desafios de nosso tempo!

JACQUES-ALAIN MILLER - Houve um tempo em que os psicanalistas tentaram definir critérios e definir aquilo que se chamava 'as condições de analisibilidade', as condições que fazem com que um sujeito seja analisável. As listas eram longas e variadas, mas grosso modo pode-se dizer que a consideração das indicações e contraindicações faziam com que a etapa final da análise fosse, de um certo modo, exigida em seu início. A psicanálise estaria contra-indicada nas psicoses puras ou nas psicopatias severas. 

EU MESMO - Pois é, isso se refere a uma concepção de tratamento psicanalítico doravante obsoleta, caduca, porque se ordena a partir da ideia de uma "psicanálise pura", certo?

JACQUES-ALAIN MILLER - "Psicanálise pura" que entendo como sendo tributária da prática médica, como uma atividade paramédica que procederia em média com cinco sessões semanais "por um período de um ano e meio à dois" [como disse Edward Glover], com finalidade de cura e normalidade. Acontece que houve uma disjunção e uma mudança no sentido mesmo do que se chamava tratamento psicanalítico. A palavra "tratamento" cessou de saturar a significação atribuída à prática da psicanálise, o que é sinalizado pela substituição dele pelo termo "experiência" psicanalítica. Do "tratamento" que pode ser "indicado", "contra-indicado" através de avaliação feita por um outro - um sábio, um conhecedor, um expert -, passou-se à "experiência" vital, ou mesmo "existencial", que pode ser "desejada" ou não pelo próprio sujeito, até mesmo arriscada para ele como uma verdadeira "aventura subjetiva".

EU MESMO - Perfeito, o que aparece em primeiro plano não é mais a indicação e sim a demanda que um sujeito - não se diz mais "paciente" - apresenta a um psicanalista, e a autenticidade, a verificar, do desejo que habita esta demanda.

JACQUES-ALAIN MILLER - E é nesse sentido, por ser o objeto-psicanalista espantosamente versátil, disponível, multifuncional, que - sem filosofar muito - digo que o encontro com o psicanalista, no geral, faz bem. O analista sabe ser objeto, sem nada querer a priori, estar sem preconceitos quanto ao bom uso que se possa fazer dele. Tendo cultivado a sua docilidade, o analista desvela identificações ideais que assolam o sujeito e articula, fluidifica sentidos bloqueados e escorrega significações substanciais, por vezes arrumando pontos de parada.

ÉRIC LAURENT - A um jovem que hesitava em encarar uma análise, Jacques Lacan, para marcar o término das entrevistas preliminares (aquele período a que chamamos de 'tratamento de ensaio'), diz-lhe mais ou menos o seguinte: "Todos acabam sempre se tornando um personagem do romance que é a sua própria vida. Para isso não é necessário fazer uma psicanálise. O que esta realiza é comparável à relação entre o conto e o romance. A contração do tempo, que o conto possibilita, produz efeitos de estilo. A psicanálise lhe possibilitará perceber efeitos de estilo que poderão ser úteis a você". [O jovem em questão era eu]

[...] 

[Breve Silêncio - e com ele, a entrada de alguns comentários esparsos e disparatados oriundos dos salões ao lado]

CRÍTICO DE ARTE - Nossa, mas como falam difícil, barroco, esnobe. Comumente dá a sensação de estarmos em dívida com nossa própria capacidade de compreensão. Pelo menos não exageraram no jargão.

PASTOR - Mas também não falaram nada, de novo.

CIENTISTA - Os tratamentos científicos são centenas de vezes mais eficazes do que os alternativos. E mesmo quando os alternativos parecem funcionar, não sabemos realmente se desempenharam algum papel: melhoras espontâneas, até de cólera e esquizofrenia, podem ocorrer sem rezas e sem psicanálise.

FILÓSOFO - A meu ver os argumentos foram bem inconsistentes. 

JORNALISTA - Pois é, depois de divulgarmos que Freud explica, descobrimos que Freud é uma fraude!

[...]

[De volta ao salão]

ELISABETH ROUDINESCO - ... 

PENSAMENTO DE ROUDINESCO - [Durante um programa de televisão, La marche du siécle, no qual eu me encontrava ao lado de Françoise Giroud, Catherine Deneuve e alguns psicanalistas, fui violentamente agredida por um jornalista, que, além do mais, insistia em insultar Lacan, Freud, a psicanálise, e, mais ainda, as células psicológicas instaladas no caso de acidentes graves.  Eu estava acostumada com aquele tipo de agressão, mas naquela noite não consegui retrucar. Então, Jean-Marie Cavada voltou-se para Françoise, que, em seu tom inimitável, deixou escapar a seguinte frase de Lacan: "A psicanálise pode muito, mas ela é impotente contra a estupidez." Assim, pôs fim ao dilúvio verbal.]

PENSAMENTO DE BION - [Eu não seria capaz de ver um regato com um fluxo plácido, sem o menor obstáculo que o perturbasse porque seria muito transparente. Mas se eu crio uma turbulência, colocando nele uma vara, então posso vê-lo. Se às vezes o barulho ensurdece, outras vezes pode trazer algo à tona. Mas me detive nisso, nessa frase que Melanie Klein usou comigo: "Psicanálise é um termo sem sentido. Mas está aí, disponível." É uma palavra em busca de um significado; um pensamento esperando por um pensador; um conceito aguardando por um conteúdo.]

BION - Ficou sem voz? Tome, aqui - chupe uma dessas pílulas psicanalíticas, devagar. Apenas deixe-a dissolver-se em sua mente. Ei! Você a engoliu! Não devia ter feito isso. Não vai te causar nenhum dano - só um pouco de dor no coração. Entretanto ela vai se espalhar pelo seu sistema e vai ser excretada pela sua mente, sem nenhum dano - como uísque, ou canela. 

ESTANISLAU – Eh... vou até o bar pegar um pouco de água.

MAITRE - Não se incomode, Sr. - tome, aqui está. Mas, senhor, se me permite, aqui entre nós, tenho uma curiosidade: não crês que ocorrem muitos diz-que-me-diz por aqui? Quer dizer, ao menos a mim, fica a impressão de que, especialmente quanto ao Freud, há muitos apropriamentos, ou muitos entendimentos, do que ele diria ou disse, não?

SILVIA BLEICHMAR -  [Desculpe, não pude deixar de ouvir] Pois é, é mesmo esta a vantagem dos vivos sobre os mortos: podemos discordar sem que nos repliquem, ou interpretar o que disseram sem que nos corrijam... um horrível privilégio que temos!

ESTANISLAU - Eu que o diga!

JANSY MELLO - [Sem estar buscando a última palavra... (i.e., espero que haja mais coisa depois, ou seja, discordância ou réplicas!)] Nós podemos nos aproveitar do legado que outros homens nos deixaram sem esse clima de competição velada devido a alguma sensação de que poderemos ir mais longe do que eles foram só porque deles discordamos, lhes replicamos e temos novas informações e recursos.  Os mortos disseram o que lhes foi possível dizer e se calaram (ou transitam em outros mundos que desconhecemos) e nossa vez de estacionarmos há de chegar... Diante do infinito, qualquer avanço da nossa parte ainda será algo muito pequeno. Confesso que o que acho ainda mais horrível do que não ser contestada pelos mortos é a falta de discordância dos vivos: quando isso ocorre sou eu quem se sente morta.

freud.jpg

 

Prescrito-Pós-escrito [À posteriori, estava lá: no silêncio ocupado]

PENSAMENTO DE FERENCZI – Queria tê-lo dito naquele momento em que nos calamos. Dito esta minha visão. “Convém conceber a análise como um processo evolutivo que se desenrola sob os nossos olhos, e não como o trabalho de um arquiteto que procura realizar um plano preconcebido. Que não nos deixemos levar, em circunstância nenhuma, a prometer ao analisando mais do que isto: se ele se submeter ao processo analítico, acabará sabendo muitíssimo mais sobre si mesmo; e se perseverar até o fim, poderá adaptar-se melhor às dificuldades inevitáveis da vida, e com uma distribuição mais justa de energia. A rigor, também lhe podemos dizer que não conhecemos tratamento dos distúrbios psiconeuróticos e do caráter que seja melhor e, sem dúvida, mais radical. Não lhe dissimularemos, em absoluto, a existência também de outros métodos que prometem esperanças de cura muito mais rápida e segura, e, no fundo de nós mesmos, rejubilamos quando ouvimos os pacientes dizerem que já seguiram, durante anos, tratamentos por métodos de sugestão, ergoterapia ou outros métodos de reforço da vontade; quando não, deixamos ao paciente a opção de experimentar um desses tratamentos tão promissores, antes de se entregar aos nossos cuidados. Mas não podemos deixar passar sem resposta a objeção habitualmente levantada pelos pacientes, a saber, que não acreditam no nosso método ou na nossa teoria. Explicamos desde o início que a nossa técnica renuncia por completo ao presente imerecido de tal confiança antecipada; o paciente só tem que acreditar em nós se as experiências do tratamento o justificarem. Mas não podemos anular uma outra objeção que consiste em dizer que remetemos assim a priori a responsabilidade de um eventual fracasso de tratamento à impaciência do doente e devemos deixar que ele decida se quer ou não, nessas condições difíceis, assumir o risco do tratamento. Se estas questões parciais não ficarem precisamente esclarecidas, desde o começo e nesse sentido, oferece-se à resistência do paciente as mais temíveis armas, que ele não deixará, cedo ou tarde, de utilizar contra os objetivos do tratamento e contra nós. Que não consintamos em nenhum desvio dessa base por qualquer questão, por mais assustadora que seja. ‘O tratamento tanto pode, portanto, durar dois, três, cinco, dez anos?’ perguntarão muitos pacientes com uma hostilidade visível. ‘Tudo isso é possível’, será a nossa resposta. ‘Mas, naturalmente, uma análise de dez anos equivale em termos práticos a um fracasso. Uma vez que nunca se pode apreciar de antemão a importância das dificuldades a superar, tampouco se pode prometer um resultado certo, e contentamo-nos em invocar o fato de que em muitos casos são suficientes períodos muito mais curtos. Mas como você vive na crença, segundo parece, de que os médicos adoram fazer prognósticos favoráveis e, além disso, como já certamente ouviu muitas opiniões desfavoráveis sobre a teoria e a técnica da psicanálise ou como as escutará daqui a pouco, é preferível que, do seu ponto de vista, considere esse tratamento uma experiência ousada que lhe custará muito esforço, tempo e dinheiro; se, apesar de tudo isso, quer tentar essa experiência conosco, deve fazê-lo depender, portanto, do seu grau de sofrimento. Em todo caso, reflita bem antes de começar: começar sem a intenção séria de perseverar, apesar de agravamentos inevitáveis, só acrescentará uma nova decepção àquelas que já sofreu ’.”

imagem stanis 3.jpg

 

Texto produzido por Estanislau Alves da Silva Filho, analista da rede de atendimento do Elabora Psicanálise.

______________________________ __________

As falas deste texto são verossímeis ou ligeiramente modificadas, adaptadas, sendo encontradas à seguir.

REFERÊNCIAS
 
BLEICHMAR, Silvia. Clínica psicanalítica e neogênese. São Paulo: Annablume, 2005 [p. 91 e p. 101]
BION, WR. "Atenção e Interpretação: uma aproximação científica à compreensão interna na psicnálise e nos grupos". Como terminam as Análises, textos reunidos pela Associação Mundial de Psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995.
BION - Conferências brasileira I - [conferencias bras. 1 p. 51] - Conversando com Bion, p. 145
CALLIGARIS, Contardo. in Didier-weill, A. (organizador). Fim de uma Análise, Finalidade da Psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1993. p. 74.
FERENCZI, Transferência e introjeção - p. 109
FERENCZI - Prolongamentos da Técnica Ativa [1921] - Dificuldades técnicas de uma análise de histeria [1919] - Contraindicações da técnica ativa [1926]
FERENCZI - O problema do fim da análise [1927]
FERENCZI -Prolongamentos da técnica ativa, Obras Completas, livro III.
FERENCZI – A elasticidade da técnica – obras completas 4 – 1928 [p. 33]
FREUD [biografo] volume 2 obras completas - estudos sobre histeria
FREUD [berheim] um estudo autobiográfico - v 20
KEHL, Maria Rita - O tempo e o cão p. 218
KLEIN, M. Sobre os critérios para o término de uma psicanálise (1950)
LACAN - Felicidade - (LACAN, 1975, p. 11) ______________ Conferência aos estudantes. Cidade: Yale University Press, 1975.
LACAN - Introdução ao comentário de Jean Hypolite [p. 374 escritos]
LACAN, J. Sem 3
MELLO, Jansy B. S. & Humberto H. S. Mello - o texto contou com a direta participação de Jansy B S Mello.
MEYER, Luiz. Sobre o Encontro Internacional: Donald Meltzer. SBPSP Boletim Mensal. Agosto de 2008 - Disponível em: <http://www.sbpsp.org.br/sitein ternosbpsp/boletins/08-08/ editorial.htm >
MEG HARRIS - http://www.artlit.info/pdfs/Me ltzerIntro.pdf
Erik Erikson, em seu livro Identidade, juventude e crise, descreve a seguinte situação ocorrida com Freud.
"Certa vez, perguntaram a Freud o que uma pessoa normal devia ser capaz de fazer bem. O indagador provavelmente esperava uma resposta complicada, profunda. Mas Freud simplesmente disse Lieben und arbeiten (amar e trabalhar). Essa fórmula simples merece ser examinada; quanto mais você refletir sobre ela, mais ela se tornará profunda."
MILLER - As contra-indicações ao tratamento psicanalítico - orientação lacaniana
 [Marcus André Vieira - O corpo falante - revista Cult 211 ano 19 abril 2016]
NOGUEIRA, Marcos Eduardo. Freud, o duplo de Goethe - http://pepsic.bvsalud.org/scie lo.php?script=sci_arttext&pid= S0102-73952008000100009 -
PENHA, João. Períodos filosóficos. 3. ed. São Paulo: Ática,1994.
PETOT, Jean-Michel. Melanie Klein II: o ego e o bom objeto - 1932-1960. São Paulo: Perspetiva, 1992. (p. 175)
[ROUDINESCO, p. 82-83, 2011 - Lacan, a despeito de tudo e de todos]
SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios.
SOLER, Collete. A psicanálise na civilização. Rio de Janeiro: Contra-Capa, 1998.Em 1958, Lacan, citado por Soler (1998, p.46) disse algo surpreendente: “ a psicanálise não se recusa a prometer felicidade”.
WINNICOTT - O brincar e a realidade
WINNICOTT - tudo começa em casa - p.12 - p. 3 Família e o desenvolvimento individual 28 e 30
VERÍSSIMO, Luis Fernando - O analista de bagé - https://rubem.wordpress.com/gr andes-cronicas-brasileiras/lui s-fernando-verissimo/