Natal Doriana

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Natal quase sempre significa se aproximar daquela parte da família que você geralmente não convive tanto, mas que, mesmo assim, pode evocar sentimentos perturbadores. A ideia é que seja um encontro feliz, contudo o palco está armado para as cenas de rivalidade entre irmãos, primos, para o reviver de perdas, para as frustrações - por não sermos amados como a nossa expectativa, ou por não amarmos e admirarmos aquelas pessoas da forma como gostaríamos que fosse. Ou ainda, estar presente em outra família que admiramos e nos ressentirmos por não ter algo parecido na nossa própria casa.

Essa instituição família pode ser uma coisa esquisita: sob determinada perspectiva parece uma espécie de clã que se propõe a ser uma garantia de amor por decreto, quase sempre fadada à frustração. A tradição supõe que, se você tem uma família, será ali onde você encontrará o seu suporte para sobrevivência e a sua fonte de amor e compreensão. Teoricamente serão as pessoas mais próximas e suas parceiras no caos da vida. Elas quem mais vão te amar, e que você também mais amará nesta existência. É um pacto de sangue, literalmente. No imaginário social a família é associada a um lar de amor e reconhecimento mútuo. Mas na real, pode ser que não seja bem assim.

É fato que a família é onde vivemos experiências memoráveis de sobrevivência e de crescimento, sendo que aquelas pessoas serão sempre nossas testemunhas. Toda essa experiência compartilhada cria marcas, boas e más, e constitui quem somos.  Contudo é preciso lembrar: as famílias não são escolhas. Não é curioso pensar que é um jogo de aleatoriedade que te coloca nestas parcerias tão profundas e importantes da vida? Temos nossas identificações com a família, mas também nos diferenciamos dela. Será que hoje seu irmão é um cara que você escolheria como amigo? A sua mãe como sua confidente? Que seu tio é um cara com quem você beberia uma cerveja?

A cena matinal do comercial da Doriana é um ideal. E nesta época natalina, todos os posts felizes de facebook alimentam ainda mais a fantasia de que todos estão vivendo aquela felicidade transbordante no antro familiar, aquela que você não tem acesso. Agora, nada mais deprimente que a ideia de que a felicidade está em algum lugar, que você poderia estar, mas que por algum fracasso pessoal não chegou lá. Submetidos a essa lógica, aproximar-se dos tempos natalinos é aproximar-se desse ideal intangível e, portanto, de penosas frustrações. Mas, ainda assim, pode ser que seja do seu desejo estar ali com esses parentes, talvez relembrar versões esquecidas sobre você mesmo, e que isso, de alguma forma, lhe alimente a alma, por que não?

No mais, os amigos, sim, são escolhas. Se eles coincidirem com sua família, saiba que és um sujeito de sorte. Senão, a minha sugestão é que você tente vê-los depois da ceia, ou guarde um tempo das férias depois de ano tão cheio para estar junto das pessoas que você escolheu e que verdadeiramente lhe fazem sentido. Os amigos tornam a vida um lugar um pouco menos hostil.

 

Nina Lira é analista da Rede de Atendimento Elabora Psicanálise

Nina Lira

Graduada pela USP e psicanalista pelo Departamento de Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Foi psicoterapeuta no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas em São Paulo e pesquisadora pela UNIFESP em projeto sobre (Re)configurações das Políticas Nacionais de Saúde, encomendado pelo Ministério da Saúde. Atualmente atende jovens e adultos em consultório particular e é uma das responsáveis pelo dispositivo clínico do Grupo de Acolhimento da Clínica Psicológica do Instituto Sedes. Entre outros trabalhos, traduziu o livro da psicanalista inglesa Meg Harris Williams, pelaKarnac Books Ltda.